Ou: uma imprevisível conexão entre duas pequenas cidades de Minas Gerais e do Reino Unido
As vezes não resisto a estabelecer alguns paralelos, por mais absurdos que sejam. Trago aqui algumas comparações entre o estado em que nasci, Minas Gerais, e a Inglaterra. A premissa parece meio desbaratinada se apresentada assim, mas espero que aos poucos ela vá fazendo algum sentido.
Em termos estéticos, essa comparação não é lá tão descabida. Caetano Veloso já falou sobre isso, se não me engano na época dos textos da sua “obra em progresso”: ele identificou no canto de Thom Yorke e nos climas das músicas do Radiohead algo semelhante ao Clube da Esquina. Vocais agudos, que parecem querer ultrapassar as montanhas de sua topografia, tristezas dos acordes de sétima aumentada, experimentalismo… Enfim, se fossemos analisar aqui esse único paralelo (a música britânica e a mineira), teríamos que escrever todo um outro artigo (talvez um livro), então me perdoem por falar disso assim, de maneira tão breve e rasa. Mas essa citação serve aqui para que eu explore um outro tópico dessa comparação.
Parece estranho comparar um estado brasileiro com um país — e, por sinal, um dos maiores países europeus em termos de PIB, de tradições culturais, de influência, etc. Mas os números mostram que a comparação é possível em algum nível. O território inteiro da Inglaterra é de 130.279km², enquanto que o de Minas Gerais é 586.52⁸², ou seja, cabem umas 3 ou 4 inglaterras no território mineiro. No aspecto demográfico, a disparidade favorece os ingleses: a população deles é de 55,98 milhões (dados de 2018), enquanto que a mineira é de 20,87 milhões (menos da metade, porém os dados de Minas são de 2015).
Nesse exercício de comparação, se não formos tão rigorosos, conseguimos traçar paralelos bem concretos: a Abadia de Westminster seria a nossa Praça da Liberdade? O Rio Tâmisa seria a nossa Lagoa da Pampulha? O Palácio de Buckingham seria a nossa Cidade Administrativa (ok, fui bem irônico nessa aqui).
Como eu disse antes, cada um desses paralelos, com toda a sua carga de absurdidade e de aparente “forçação” de barra, mereceriam todo um estudo mais aprofundado, com potencial de se explorar questões sociais, culturais, políticas, geográficas, etc. Deixo isso aqui como provocação, mas também para preparar o paralelo que eu realmente quero analisar nesse texto: falar da minha cidade natal, Congonhas, e de sua correlata inglesa (vou adiar a informação para manter um certo ar de mistério).
Congonhas fica localizada a 75km da capital de Minas, Belo Horizonte, tem uma população de 55.836 habitantes, e é conhecida por ter o maior acervo barroco a céu aberto do mundo. Sua principal igreja é o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, com seu imponente adro composto pelos doze profetas esculpidos em pedra-sabão por Aleijadinho e seus assistentes.
O Santuário (declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO) foi inspirado em outras igrejas portuguesas, como o Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, e o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego. É o principal centro devocional da devoção ao Senhor Bom Jesus, e um dos maiores centros devocionais brasileiros. Recebe milhares de peregrinos anualmente, sejam nos dias correntes do ano, feriados, ou, principalmente, na época do Jubileu (entre 08 e 14 de setembro).
Pois bem, descobri uma cidade correlata na Inglaterra. E ela é Canterbury. Vejam só os paralelos em relação aos aspectos que descrevi acima sobre Congonhas: Canterbury fica localizada a 87km da capital inglesa, Londres. Tem uma população de 55.240 habitantes, e, devido a grande quantidade de catedrais históricas, é considerada como uma “cidade catedral” (todas tombadas pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade). A principal delas é a Catedral de Canterbury, onde está situado o túmulo de Saint Thomas Becket. A importância dessa Catedral é enorme do ponto de vista devocional, e, há séculos, a circulação de peregrinos para a cidade chega a ultrapassar numericamente cidades ainda mais antigas que Canterbury no quesito de peregrinações devocionais, como Frideswide, Cuthbert ou Wulfstan.
Cabe aqui ainda uma curiosidade: Uma das mais importantes obras literárias medievais é baseada nesse circuito de peregrinação: Contos da Cantuária (Canterbury Tales), livro escrito por Geoffrey Chaucer entre 1387 e 1400. O enredo desse livro apresenta um grupo de peregrinos que saem da pousada Tabbard Inn (localizada em Southwark, distrito de Londres que fica ao sul do Rio Tâmisa) rumo à Catedral de Canterbury. A obra de Chaucer reúne vários contos escritos em verso e em prosa narrados por cada um desses peregrinos.
(e qual seria a versão brasileira dos Contos da Cantuária? Sugiro O Grande Mentecapto, de Fernando Sabino, que é composto de capítulos meio interdependentes, e, em um deles, temos uma peregrinação à Congonhas).
O fato é que, entre Congonhas e Canterbury, a quantidade de coincidências é considerável: distância similar da capital, população similar, papel histórico de centro devocional e peregrinação, etc. Mas talvez os paralelos se encerrem aí, e vem a parte triste da história — para nós, brasileiros, no caso.
Enquanto a economia de Canterbury é baseada no turismo (sendo uma das cidades mais visitadas de todo o Reino Unido), Congonhas passou muitos anos sendo ignorada dos roteiros turísticos das cidades históricas mineiras (apesar de seu impressionante acervo barroco). Sua economia até hoje ainda é fortemente baseada na extração mineral e na indústria metalúrgica.
Nos últimos anos, houve algum investimento para impulsionar o turismo em Congonhas, e o ponto alto desse esforço foi claramente a construção do Museu de Congonhas, em 15 de dezembro de 2015. Na época, a então presidenta do Brasil Dilma Rousseff e o então Ministro da Cultura Juca Ferreira, além do presidente da UNESCO Lucien Muñoz, estiveram pessoalmente na cidade para inaugurar essa importante obra. Apesar disso, o fluxo de turistas na cidade ainda é inferior ao de cidades mineiras como Ouro Preto ou Tiradentes.
Ainda no tópico do turismo, o acesso à Canterbury apresenta várias opções interessantes, como os trens (a cidade tem duas estações ferroviárias, uma sendo uma delas a primeira ferrovia regular de passageiros do mundo), e acesso por três diferentes rodovias. Caso se escolha ir de carro, o turista pode, no meio da estrada, fazer paradas para visitar o Leeds Castle, ou as falésias brancas de Dover, e ainda a simpática cidadezinha de Rye.
Já Congonhas aposentou a sua ferrovia (bem, mais ou menos. Ela ainda existe, mas é exclusiva das mineradoras. Pelo menos a antiga estação de Congonhas foi convertida em um espaço cultural). A cidade dos profetas só tem um acesso por rodovia, através da BR-040 (que liga Brasília ao Rio de Janeiro). O trecho mais perigoso da rodovia se situa justamente nos arredores de Congonhas, e a falta de um canteiro central, aliado ao elevado número de caminhões, gera constantes acidentes graves no local. Mas nem tudo são problemas. Nesse trecho da estrada, um destino turístico em especial atrai os viajantes que trafegam pelo circuito das cidades históricas mineiras: o Instituto Inhotim, localizado na cidade de Brumadinho, considerado o maior museu a céu aberto do mundo, com um impressionante acervo de arte contemporânea.
A grande questão é que a atividade mineradora, que tanto eclipsa o acervo histórico, impacta também todo esse potencial turístico. A mesma cidade de Brumadinho onde fica Inhotim é mais lembrada por um fato lamentável: o rompimento de uma barragem de minério ocorrido em janeiro de 2019, que é considerado o maior acidente de trabalho no Brasil em perdas humanas e o segundo maior desastre ambiental do século (perdendo apenas para o rompimento de barragem em Mariana, ocorrido a apenas 86 km de distância um do outro).
Nesse sentido, vale mencionar que Congonhas tem uma barragem classificada como sendo de alto risco — a barragem Casa de Pedra, localizada no alto da cidade. Seu tamanho monumental (é a maior localizada em território urbano na América Latina) e sua localização faz com que a quantidade de pessoas e de áreas atingidas em caso de rompimento teria um impacto catastrófico, com implicações possivelmente maiores que as já lamentáveis tragédias de Mariana e Brumadinho.
E no aspecto educacional? A cidade de Canterbury apresenta alto fluxo de estudantes (31 mil, a maior proporção de estudantes/residentes em todo o Reino Unido), por conta da presença da Universidade de Kent, além das Canterbury Christ Church University, University of Creative Arts e a Girne American University Canterbury Campus. Além disso, a Kings School (a mais antiga do Reino Unido) é uma das dez melhores escolas públicas do Reino Unido. Já Congonhas não sedia nenhum campus universitário federal ou estadual. O consolo é saber que a cidade tem um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, que conta com duas licenciaturas, dois bacharelados e uma pós graduação lato sensu.
Quis propositalmente interromper aqui o fluxo de comparações depreciativas em relação à Congonhas, porque trata-se de uma cidade pela qual tenho muito afeto. Seria muito injusto situar a cidade inglesa como impecável e Congonhas como um lugar sem nenhum aspecto digno de nota. Canterbury, por exemplo, apesar de lançar nos anos 1970 um dos movimentos mais interessantes da música nas últimas décadas, chamado de “Canterbury Scene”; deixou esse legado meio de lado, ao ponto de muitos dos artistas associados a essa cena (como Hugh Hopper ou Richard Sinclair) reclamarem bastante da falta de lugares adequados na cidade para apresentações musicais.
Meu objetivo com essa comparação de dados é tentar esclarecer a diferença entre um país que consolidou sua economia na mera exportação de matéria prima (Brasil), e um país que entendeu que não é salutar essa história de ancorar a produção econômica de toda uma nação em cima de uma única (e predatória) atividade. Para além da necessidade de diversificação de meios econômicos, o exemplo de Canterbury mostra também o compromisso da Inglaterra com suas tradições, seu patrimônio, não apenas no sentido de preservação estanque, mas de transformar esse acervo em circulação financeira, através do turismo (com seus inúmeros cafés, museus, espaços culturais, etc.), dos centros de ensino de excelência, e muito mais.
Congonhas tem um potencial turístico completamente desperdiçado, além de sítios arqueológicos abandonados, espaços culturais precários e completamente apartados da tradição cultural da cidade, e isso sem contar o desperdício também no potencial de se tornar uma cidade estudantil: ao comparar com cidades próximas como Ouro Preto ou São João del Rei, boa parte da circulação econômica nesses lugares se ampara no alto fluxo de seus estudantes residentes.
O exemplo de Canterbury mostra o que Congonhas poderia se tornar — e, em certa medida, esse exercício de comparação mostra bem o que o Brasil como um todo poderia ser — caso tivéssemos representantes políticos que não usassem de seus cargos para autorizar atividades econômicas desvencilhadas de qualquer compromisso ético com as populações de seus respectivos países.