Políticas públicas são defendidas para que o cenário possa ter alguma alteração; pesquisa da UFMG mostra que o fato é reflexo do racismo estrutural
“Mulheres estão morrendo e o que temos visto é que a situação não se altera”. A afirmação é da pesquisadora Isabella Vitral Pinto que realizou durante o doutorado no Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) um estudo que revelou que mulheres pretas têm maiores chances de óbitos por violência interpessoal. Políticas públicas voltadas a este público são defendidas para que o cenário possa ter alguma alteração.
Mais de 100 mil casos de violência foram analisados por Isabella durante a pesquisa que teve o objetivo de realizar uma análise epidemiológica da violência interpessoal, com enfoque na Violência por Parceiro Íntimo (VPI).
“A violência é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como problema de saúde pública e neste sentido tenta organizar em três tipos: a interpessoal que é provocada por outra pessoa; o outro é a autoprovocada, o próprio indivíduo faz algum ato contra si e temos a violência comunitária, que é vinculada a violência urbana”, explica.
No caso da violência que foi alvo do estudo, o principal autor, na maioria dos casos, é justamente o parceiro da vítima. “A interpessoal pode ser perpetrada por uma pessoa conhecida e, no caso das mulheres, os principais autores são os parceiros íntimos. Temos outras situações como familiares, pais, mães e irmãos, ou seja, ela está sendo praticada por conhecidos, mas também é motivada pela desigualdade de gênero e das normas. O que mais vemos é a violência vindo de parceiros”.
Racismo estrutural
Apesar de todas as classes e grupos raciais serem atingidas pela VPI, mulheres pretas, pardas, amarelas e indígenas têm 33% de mais chance de óbito após a violência interpessoal do que mulheres brancas. O racismo estrutural ajuda a explicar a situação e é um fator agravante.
“O racismo é mais uma camada que temos de violência que se soma aos tipos definidos pela OMS e impacta de forma profunda. Ele justamente acaba agravando a situação destas mulheres, pois o acesso aos serviços é mais dificultado. A violência é complexa, multifatorial e para que ela saia da situação de violência envolve acesso à moradia, renda, emprego, rede de serviço. Então, as mulheres pretas e negras vão encontrar mais dificuldades de acessar esses direitos e, consequentemente, a saída da situação de violência”, alerta a pesquisadora.
Um dado que preocupa a pesquisadora é o fato da estabilidade no número de mulheres mortas. Em Minas Gerais, por exemplo, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em agosto do ano passado, indicou que 419 mulheres foram assassinadas em 2021. Desse número, 154 foi enquadrado como crime de feminicídio, que é considerado hediondo no país. Por lei, um assassinato é considerado feminicídio quando ocorre em função de algum tipo de violência doméstica ou familiar, ou quando resulta da discriminação de gênero, manifestada por misoginia e objetificação da mulher
“Os números são alarmantes e o que temos visto é que a situação não se altera”. Para Isabella é preciso que aconteça uma mudança cultural, mas também nas áreas de assistência social e saúde para que ocorra uma atuação intersetorial. A pesquisa demonstra, na análise do advogado William Santos, diretor de Inclusão da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB-MG), o passado secular e atual do Brasil.
“Fomos um país escravista por mais de 300 anos e a condição da mulher sempre foi subjugada. Nas delegacias, criadas com o advento da Lei Maria da Penha, o sentimento é que as mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica e a pesquisa revela a constatação”.
Santos ainda vê um longo caminho a ser percorrido no país, já que para ele ainda houve a emancipação com a questão de gênero e raça. “Há muita discriminação e a mulher é sujeita a isso duas vezes: pela cor da pele e por ser mulher”, enfatiza.
Políticas públicas
Tanto Isabella quanto Santos defendem a efetivação de políticas públicas em prol das mulheres. “Numa perspectiva histórica houve o interesse no começo do século XXI em tratar o problema de uma forma séria. Tivemos a Secretaria de Política para Mulheres, a Conferência de Políticas para Mulheres e a própria Lei Maria da Penha. Agora, nos últimos anos o tema teve falta de sensibilidade e foi tratado como mimimi e não foi enfrentado como problema real. Isso trouxe prejuízo para as políticas públicas e para o enfrentamento da violência”, ponderou Isabella.
“Se não tiver a mão do Estado não basta ter lei. A Lei Maria da Penha, para exemplificar, não consegue coibir [a violência], ela veio como pressão para tentar diminuir e tem caráter punitivo. Às vezes as pessoas podem não entender o motivo de pesquisas como essa, porém ela explica a sociedade: machista e com resquícios colonialistas”, destaca o diretor de Inclusão da OAB-MG.
FONTE O TEMPO