Na penúltima matéria sobre o tema, vamos destacar documento produzido pelo Simpósio Nacional de História em 2015, na cidade de Floripa-SC sobre os enforcamentos no Brasil Império, escrito pelo historiador Claudio Roberto Antunes Sherer Jr. 1
Por João Vicente
Parte 4 – Corda Branca em Carne Negra
“A noite não havia sido tranquila. Praticamente nenhum dos cinco sequer fechou os olhos. As horas passavam como as rápidas águas de uma corredeira, incessantes e ininterruptas, e os pensamentos flutuavam sem limites, apesar das grades que os cercavam. Lá fora o sol brilhava, anunciando outro belo dia de primavera. Esse dia, só não seria belo para os escravos Antônio, Ciro, Amaro, Henrique e Benedito, pois seria, forçosamente, o seu último dia sobre a terra. O cortejo teve início às nove horas da manhã. Na frente rompia pela multidão um grupo de nove praças da cavalaria policial, sua difícil missão era abrir caminho através do povo que se aglomerava para assistir cada detalhe do funesto evento. Logo atrás, erguendo seu estandarte, vinha a Irmandade da Misericórdia precedendo os cinco condenados que caminhavam em fileira com os baraços nos pescoços; estes estavam acompanhados do famoso carrasco Fortunato e de cinco padres que lhes prestavam as consolações religiosas. Ainda mais atrás seguia o Juiz Municipal, depois deste o porteiro dos auditórios, que lia em voz alta a sentença e um pouco mais atrás os oficiais de justiça, todos trajando preto. Fechava o préstito um piquete de cavalaria da Guarda Nacional composto de trinta e duas praças comandadas por um oficial. O espetáculo era acompanhado de perto por inúmeras pessoas, umas com olhar de pura curiosidade, sem saber ao certo o que estava acontecendo, alienadas ao evento, tentando compreender o que se passava. Outras observavam com olhar de reprovação diante de sombrio espetáculo, admirada e descrente diante de tamanha movimentação popular, talvez até dissessem: “O povo gosta de sangue”!”. Sem nem ao menos perceber que eles mesmos não conseguiam tirar os olhos do que acontecia. Havia também os olhares misericordiosos, que mesmo sem saber os motivos que levaram esses homens ao cadafalso, sentiam por eles uma incomensurável piedade. Algumas pessoas, tentando aparentar certa racionalidade diante de um ato tão irracional, diziam: “Que a justiça seja feita!” Ela, a Justiça, acabava sendo a culpada pelo o que se passava. Porém, apesar desses e de outros olhares que presenciavam a cena, nenhum superava em quantidade os olhos vazios e sem reação, alguns diriam sem paixão, sem sentimento, sem alma, da multidão de escravos que se encontravam diante da forca para assistir a execução, todos trazidos pelos seus senhores com o intuito de acompanharem de perto as consequências de atos de insubordinação. O intuito era dar o exemplo do que poderia lhes acontecer caso resolvessem rebelar-se e atentar contra seus donos. Essa multidão toda era separada do patíbulo por uma Infantaria do Corpo Policial com cerca de sessenta homens, e mesmo apesar de tamanho número de escravos acompanhando a execução de seus companheiros de infortúnio, nenhuma só voz, nenhum só gesto foi percebido de desaprovação do que se passava diante deles. Mais do que medo, era um momento de respeito frente à morte. Amaro foi o primeiro a subir a escada do patíbulo, estando com o nó preso gritou que ali estava, mas que não tiveram o gosto […], sendo interrompido pelo rufo dos tambores e toques de corneta, antes de ser atirado. O próximo era Antônio, que exaltado pela cachaça que havia tomada como um dos últimos pedidos animava os outros e em alta voz recordava-lhes o Deus onipotente. Ciro, no alto da forca não consentiu que o carrasco lhe atasse os braços e travando resistência, atirou-se voluntariamente, sem escutar o padre, que lhe rezava o credo final. Henrique mostrou coragem excepcional e não se abateu, quando o carrasco o quis empurrar ele não lhe deu tempo e saltou só. O último foi Antônio que após assistir a morte de seus companheiros e se vendo só, desanimou e subindo automaticamente, sem qualquer tipo de reação, se entregou pacificamente ao seu destino último. Por volta do meio-dia tudo estava consumado. Os corpos, à medida que morriam os condenados, eram logo encomendados e postos em caixão fechado. Tudo estava terminado, a exemplar correção tinha sido dada. Os ânimos iam se acalmando e a rotina se reestabelecendo. Os senhores de escravos satisfeitos, pois depois deste acontecimento acreditavam que seus cativos pensariam duas vezes antes de qualquer ato de insubordinação. A “Justiça” havia sido feita.” ( Narração livre baseada no Ofício do delegado de Polícia de Campos (RJ) para o Presidente da Província, em 21/10/1873)
Como podem ver acima, a narração livre se baseia num oficio de um delegado fluminense ao presidente da Província do RJ em 1873 e que relata com pormenores que a sentença de morte imposta aos negros criavam um clima de desolação, reclusão, medo e incerteza por parte da população em geral. Nessa penúltima viagem sobre os enforcados do século XIX no Brasil Império tem como objetivo atiçar tanto o mundo acadêmico regional e o senso comum a refletir sobre esse período de devaneios, revoltas, injustiças, assassinatos e enforcamentos que se abateu sobre os escravos, no Brasil Império, destacando as províncias de SP,RJ, BA e MG.
Quando a forca começou pra valer no pescoço da carne negra ?
A historiografia oficial, de um modo geral, delega a efetiva criação da lei de 10 de junho, a um marcante evento acontecido na Bahia em janeiro de 1835: A Revolta dos Malês, o maior movimento rebelde em uma cidade da América escravista, (REIS, 2003, Apud: PIROLA, 2012, p.54) poucos meses antes da aprovação da lei de 10 de junho de 1835. Essa revolta basicamente foi uma mobilização de escravos muçulmanos que buscavam a libertação dos cativos de religião islâmica. Porém, como nos mostra Ricardo Pirola em sua tese (2012, p.90) “(…) parece mais interessante à existência de um conjunto de eventos no começo da década de 1830 que pressionaram para a criação da lei de 10 de junho de 1835, do que associar a lei dos crimes escravos a um único acontecimento como tem feito à bibliografia (…).” Pirola elenca três regiões que demonstram a existência desses demais eventos exemplificadores do aumento da insubordinação escrava: Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Além da Revolta dos Malês, a concentração de diversos movimentos rebeldes nos anos finais da década de 1820 no Recôncavo Baiano, talvez tenha colaborado para moldar determinados aspectos da lei dos crimes escravos, principalmente com relação a agilidade da punição dos delitos de assassinato e insurreição nos locais em que foram cometidos, isso devido ao isolamento de algumas propriedades. (PIROLA, 2012, p.57) Minas Gerais em 1824 era a segunda maior população escrava do país, perdia apenas para a Bahia. E foi na cidade de São Thomé das Letras, mais precisamente na Freguesia de Carrancas, que em 13 de maio de 1833 aconteceu a Insurreição de Carrancas, onde uma série de assassinatos contra senhores e seus descendentes (inclusive bebês) foram cometidos por escravos que buscavam liberdade. (PIROLA, 2012, p.60/65, 66) Na província de São Paulo os escravos estavam animados com as chances de alcançar a liberdade no começo de 1830, e em 1831 foi descoberto um plano de insurreição que ficou conhecido como o Levante de Ubatuba. A revolta teria início na festa de Natal de 1831, as autoridades só tiveram conhecimento dessa trama porque desconfiado com as saídas noturnas de seus escravos, um senhor ameaçou vendê-los para o Rio Grande do Sul caso não contassem o que tramavam, não acreditando nas ameaças do senhor os escravos nada diziam, porém, quando se viram embarcados e rumo ao sul, resolveram revelar todo o plano. Na noite de Natal as portas da igreja e as principais entradas da cidade seriam cercadas e o depósito de armas e munições atacado. O objetivo era matar os brancos, ‘principalmente os mais ricos’, se apropriar de seus bens e conquistar a alforria. (PIROLA, 2012, p.81-83) “Ao analisar as evidências de rebeldia na Bahia, Minas Gerais e São Paulo é possível notar um denominador comum, isto é, um aumento da agitação escrava pós-1831, em decorrência das disputas políticas que dividiam o mundo dos livres.” (PIROLA, 2012, p.88) Essas disputas políticas a que se refere o autor, diz respeito à abdicação de Dom Pedro I em 1831. Os escravos talvez vissem nesse momento uma oportunidade de libertação.
Lei n° 04 de 10 de junho de 1835
Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento, ou ofensa física forem leves, a pena será de açoutes a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.
Art. 2º Acontecendo algum dos delitos mencionados no art. 1º, o de insurreição, e qualquer outro cometido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Júri do Termo (caso não esteja em exercício) convocada pelo Juiz de Direito, a quem tais acontecimentos serão imediatamente comunicados.
Art. 3º Os Juízes de Paz terão jurisdição cumulativa em todo o Município para processarem tais delitos até a pronuncia com as diligencias legais posteriores, e prisão dos delinquentes, e concluído que seja o processo, o enviarão ao Juiz de Direito para este apresenta-lo no Júri, logo que esteja reunido e seguir-se os mais termos.
Art. 4º Em tais delitos a imposição da pena de morte será vencida por dois terços do numero de votos; e para as outras pela maioria; e a sentença, se for condenatória, se executará sem recurso algum.
Art. 5º Ficam revogadas todas as Leis, Decretos e mais disposições em contrario.
ENFORCAMENTO E OS LOCAIS DA FORCA
A forca era montada num lugar onde houvesse espaço para o público, afinal, era para servir de exemplo e os largos das villas eram os lugares preferidos pelas autoridades constituídas. E diferente do que normalmente imaginamos, não era uma estrutura de madeira com um tipo de palanque e um alçapão por onde o condenado caía de súbito, no Brasil a forca ergue-se sobre três moirões, em forma triangular, a ela se sobe por uma escada, (RIBEIRO, 2005, p.11) a vítima sobe auxiliada pelo carrasco e tem suas mãos e pés atados. Algumas vezes o sacerdote lhe dava os últimos consolos religiosos antes de subir a escada, em outras ele as dava já com a corda ao pescoço. Mas o grande diferencial de todo o processo é justamente quando o condenado era dependurado pelo pescoço, pois nesse momento o carrasco, literalmente, salta sobre os ombros do enforcado, ficando numa posição popularmente conhecida como ‘cavalinho’, o intuito desse ato, um tanto quanto bizarro, era acelerar a morte. Quando o executor percebia o cessar de movimentos, e principalmente quando percebia os ombros da vítima caídos, ele cortava a corda e checava se a vítima ainda estava viva. Caso a resposta fosse afirmativa, o executor deveria erguer novamente o condenado até este efetivamente morrer. Ou como aconteceu em 1850, na cidade de Queimados, no Rio de Janeiro, onde o carrasco talvez com pouca paciência não mediu esforços para finalizar seu trabalho: “Alguns momentos depois era a corda cortada e atirada no chão o corpo; como, porém, ainda não tivessem cessado as agonias, o executor lançou mão de um madeiro que se achava ao lado da forca e esmagou por partes, o crânio, os braços e as pernas do justiçado.” (RIBEIRO, 2005, p.153). O executado era o escravo João, tinha participado de uma insurreição e talvez por tal motivo, teve esse terrível fim.
O ato de enforcar não era tão simples quanto muitas vezes pensamos. Um enforcamento feito da maneira errada poderia prolongar durante horas o sofrimento do executado, muitas vezes ele urinava e defecava na agonia do estrangulamento, a corda não ajustada corretamente poderia se romper, fazendo com que a vítima caísse, fraturasse uma perna e tivesse de passar por todo o processo de amarração e por toda a angústia da espera final. Além de toda a solenidade do cortejo rumo ao patíbulo narrada no início desse artigo, a técnica de enforcar utilizada no Brasil teve suas peculiaridades como podemos ver na citação abaixo:
“Manoel Moçambique que se havia apresentado com tanto sangue frio perante o Tribunal dos Jurados, já não era o mesmo. Suas feições estavam mudadas, seu físico mostrava ter padecido bastante; e quando chegou ao patíbulo, mais alteração patenteou. Subiu as escadas com passo vacilante; tremiam-lhes as pernas; e até o último degrau onde se sentou, foi sustentado pelo sacerdote. Aí, em quanto o algoz amarrava a ponta da corda na forca, o sacerdote recitava o credo em voz alta. Depois desta oração, o algoz atirando o paciente, lançou-se em seus ombros, mas de tal modo que depois de conservar-se por cinco minutos nesta posição, não chegou a estrangulá-lo, e foi preciso apertar a corda para o acabar. Finda a execução, o juiz criminal mandou lavrar o auto respectivo, e conservou-se ali com toda a força armada, até chegar à rede que conduziu o cadáver do enforcado para ocemitério.”(JORNAL DO COMÉRCIO, 05/05/1836. Apud: RIBEIRO, 2005, p.74)
1-Artigo desenvolvido para obtenção do título de Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNASSELVI
Na próxima e ultima parte sobre a matéria “ Cemitérios dos Enforcados” destacaremos alguns enforcamentos acontecidos na província de Minas Gerais com destaque para cidade Piranga.