Sobrado de três pavimentos que pertenceu à lendária senhora de escravos integra o Centro Histórico de Pitangui, tombado em 2008
Considerado um dos mais belos e imponentes casarões do período colonial de Minas Gerais, o imóvel do século 18 onde viveu Maria Tangará em Pitangui, no Centro-Oeste mineiro, amarga o abandono. Hoje, caindo aos pedaços, o sobrado de três pavimentos que pertenceu à lendária senhora de escravos integra o Centro Histórico de Pitangui, tombado em 2008 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).
O imóvel foi sede do Fórum, do Externato, do Colégio Padre João Porto, assim como da Casa da Intendência de Minas. Em 5 de fevereiro de 1930, foi inaugurada a primeira escola que o edifício abrigou, o Grupo Escolar Benedito Valadares. Recentemente, era sede da Escola Estadual Professor José Valadares, mas teve que ser esvaziado por causa dos estragos.
Telhado aberto, paredes rachadas, vidraças quebradas, luzes queimadas e muita poeira. Quando chove, a situação piora. A água, por exemplo, entra por todos os lados da casa. Enxurradas correm pelas escadas de madeira, deixando muita lama. Além disso, as salas de aula estão às escuras e cheias de morcegos.
Por causa dos riscos, incluindo de acidentes elétricos, em 12 de abril de 2019 os alunos da Escola Estadual Professor José Valadares foram transferidos para a Escola Estadual Francisca Botelho, que fica a um quarteirão de distância. A promessa de um restauro do Casarão de Maria Tangará manteve as expectativas da comunidade escolar. Mas, o não cumprimento do que havia sido prometido levou à extinção da Escola Estadual Professor José Valadares em 2020.
Restauração sem previsão
Desde então, não houve, por parte do governo de Minas, que é o dono do imóvel, qualquer previsão para a restauração. Todos os alunos e funcionários da José Valadares seguem incorporados à Escola Estadual Francisca Botelho. Sem a utilidade escolar, o sobrado de Maria Tangará segue abandonado e sofrendo degradação do tempo.
A educadora Eliana Campos foi diretora da José Valadares por oito anos. Quando a escola fechou, coube a ela ser a guardiã das chaves do casarão. Sempre que alguém precisa entrar no edifício para fazer vistoria ou registrar a situação da estrutura, ela é chamada e não mede esforços para atender às demandas. De acordo com ela, cada volta traz à tona recordações de tantos momentos vividos ali.
“Embora esse casarão tenha sido, no período escravagista, cenário de momentos muito tristes da história do Brasil, também foi palco de um importante momento de bondade em 1930, quando o prédio foi doado para ser fundada, criada e mantida aqui uma escola”, diz ela. A diretora espera que políticos nos níveis municipal, estadual e federal deixem diferenças de lado e busquem uma forma de restaurar o imóvel.
“Que passe a funcionar aqui algo que traga benefícios para as comunidades pitanguiense, mineira e brasileira. Esse prédio não faz parte só da história de Pitangui, mas também da de Minas Gerais e do Brasil”, complementa.
Riscos de danos irreversíveis
Arquivista do Instituto Histórico de Pitangui (IHP), o historiador Israel Almeida condena o que classifica como “completo estado de abandono de um patrimônio histórico tão importante jogado às traças”. Conforme o historiador, o casarão se degrada um pouco mais e segue um curso a cada dia que passa sem receber os devidos cuidados. Segundo ele, os danos podem ser irreversíveis.
“Passados cinco anos desde a extinção da escola, infelizmente o prédio foi se tornando um depósito para lixo, depredação e invasão. Em uma vistoria técnica que tive o prazer de participar em 2023, pude ver de perto os danos causados pela ação do tempo, umidade e ocupação ilegal. Como um ex-aluno, foi de partir o coração voltar para um espaço que me proporcionou tantas experiências e que agora se encontra negligenciado”, afirma Almeida.
Com experiência no setor de gestão de patrimônio cultural, Israel explica que entende as dificuldades de promover políticas públicas, bem como ações efetivas para intervir em um bem patrimonial tão importante. “Mas sei também que o Estado deveria dar mais atenção a esse fato e que através do órgão estadual responsável, que é o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Minas Gerais (Iepha-MG), poderia-se tentar um diálogo entre os poderes estadual e municipal para que soluções possam ser pensadas e aplicadas de fato para salvar este bem patrimonial que, ao meu ver, é um dos mais simbólicos de nossa história”.
“Pouco tempo”
Em consulta a colegas das áreas de restauração e conservação, Almeida ouviu que pode haver pouco tempo para a ação antes que haja o colapso de alguma estrutura no casarão ou um dano irreversível. “De acordo com eles, o interior do prédio foi totalmente alterado para atender à escola e o estado de abandono que ele se encontra é terrivelmente grave, mas não se pode prever ou teorizar um colapso total da estrutura”, explica ele. “Existe risco de acidentes no interior do prédio. O tabuado tem risco de ceder e provavelmente o cheiro que advém do lixo e do entulho acumulado pode causar danos à saúde humana”, acrescenta.
Israel diz que percebe em Pitangui algumas iniciativas em prol da municipalização do prédio – ou seja, que ele passe a ser, ao todo ou ao menos em parte, propriedade do Município. “Não creio que seria a melhor solução, dados os recursos robustos que precisarão ser investidos no restauro”, opina.
Esperança na iniciativa privada
O empresário Haroldo Vasconcelos é um conhecido investidor em imóveis históricos de Pitangui. São dele, por exemplo, o antigo casarão de Monsenhor Vicente – cujo restauro custou R$ 2,5 milhões e hoje abriga uma pousada de mesmo nome – e o Edifício Liliza, que fez história ao ser teatro, cinema e, em tempos mais recentes, agência de correio e cujo restauro teve o investimento de R$ 1,1 milhão.
Os dois imóveis estavam em condições bastante precárias e corriam risco de colapso. Como não eram patrimônio público, Haroldo os comprou e restaurou. Não seria tão fácil fazer o mesmo com o Casarão Maria Tangará, uma vez que ele pertence ao Estado. Porém, Haroldo garante que já tentou, tendo inclusive, diz ele, conversado sobre o assunto com o governador Romeu Zema.
Segundo ele, a oferta que fez ao governador teria sido o melhor para o casarão. “Eu preferiria o que sugeri, porque tenho experiência em restaurar. Na época o curso estimado era de R$ 9 milhões. Agora, com todos os danos que já ocorreram, é bem mais. O casarão está caindo aos pedaços e isso faz com que restaurar fique cada vez mais caro”, analisa o investidor.
“Sem falar que tudo o que é feito pelo poder público demanda licitação. Portanto, levaria ainda mais tempo. E quanto mais a obra demora a começar, mais o imóvel se deteriora mais e a situação piora. Com base na minha experiência com isso, creio que o Estado não vai restaurar por iniciativa própria. Até porque não dá votos. Esse casarão é um dos mais importantes de Pitangui. A população precisa lutar pela restauração”, diz Vasconcelos.
Prefeitura busca posse
A Prefeitura de Pitangui informou que já dialoga com o governo de Minas sobre a transferência de posse do imóvel. “Embora o casarão pertença ao Estado, é um patrimônio pitanguiense e por isso há interesse do Município em tê-lo. Apenas com a posse do imóvel é que a Prefeitura poderia investir recursos próprios ou destinar emendas parlamentares. Existe uma conversa junto ao Estado solicitando a cessão. Mas isso ainda está sendo discutido no âmbito estadual”, diz o Executivo.
MPMG na cola
No Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a promotora de Patrimônio Histórico e Cultural de Pitangui Larrice Luz Carvalho, informou que há um procedimento em andamento e que já segue na Justiça, com sentenças já determinadas contra o Estado. “Temos uma reunião agendada com representantes do Estado para cobrarmos uma solução”, afirma.
A reportagem tentou contato com o governo de Minas, contudo, não obteve retorno até a publicação desta matéria.
FONTE ESTADO DE MINAS