O livro infantil “O Menino Marrom”, do premiado escritor Ziraldo, foi proibido de ser aplicado nas salas de aulas das escolas municipais de Conselheiro Lafaiete, na região Central do Estado. A prefeitura da cidade publicou uma nota oficializando a suspensão do exemplar nesta quarta-feira (19 de junho). O motivo, segundo a secretaria de educação de Lafaiete, seria a repercussão negativa do conteúdo do livro entre pais e familiares dos alunos.
A decisão ganhou repercussão nacional em diversos veículos de comunicação. Mesmo afirmando que o livro é um recurso valioso que “facilita a compreensão de conceitos como racismo e empatia”, a Secretaria de Educação do município cedeu à repercussão negativa entre os familiares. “Lamentamos que tenham havido interpretações dúbias acerca do mesmo”, publicou o Executivo. A suspensão de “O Menino Marrom” ocorre após áudios de pais de alunos circularem nos grupos de responsáveis questionando trechos específicos da história.
As reclamações são voltadas para partes do livro como pacto de amizade, em que os personagens simulam uma ligação entre eles por meio de uma tinta azul. Na avaliação do sociólogo e especialista em desigualdades raciais, João Saraiva, a suspensão da obra é uma perda para as crianças, que teriam um exemplo de autoestima negra em mãos. “‘O Menino Marrom’ é usado a muitos anos para falar de maneira leve e poética sobre as diferenças raciais. Cor de pele, formato de boca, nariz, é leve e elogioso. Uma obra que apresenta de uma forma muito positiva os traços negros e funciona para elevar a autoestima das crianças”, analisa.
“O Menino Marrom” conta a história de uma amizade entre duas crianças, uma negra e outra branca. Publicado em 1986, o livro é usado nos dias atuais como forma de abordar o tema da diversidade racial e o enfrentamento ao preconceito entre alunos do ensino fundamental. A prefeitura de Conselheiro Lafaiete afirmou que o exemplar “aborda de forma sensível e poética” a amizade interracial. “Os personagens, apesar de suas diferenças, desenvolvem uma amizade genuína e se divertem juntos”, disse por meio de nota.
Reclamações
As reclamações são voltadas para ao menos duas partes da história do livro. Uma delas envolve um pacto de amizade, em que os personagens simulam uma ligação entre eles por meio de uma tinta azul. O pastor Chrystian Dias gravou um vídeo nas redes sociais com posicionamento contrário ao uso da obra literária nas escolas de Conselheiro Lafaiete.
Ele afirma que pais o procuraram para falar sobre o trecho que, nas palavras dele, “induz as crianças a fazer pacto de sangue, cortando o punho”. Em outro trecho, segundo ele, o livro incentiva as crianças a “desejar o mal para as pessoas”. A partir da publicação, que orientava os pais a procurarem os gestores para rever o uso da obra no ensino, a prefeitura tomou a decisão.
Avalição de especialistas
Na avaliação do sociólogo e especialista em desigualdades raciais, João Saraiva, a suspensão da obra é uma perda para as crianças, que teriam um exemplo de autoestima negra em mãos. “‘O Menino Marrom’ é usado há muitos anos para falar de maneira leve e poética sobre as diferenças raciais. Cor de pele, formato de boca, nariz, é leve e elogioso. Uma obra que apresenta de uma forma muito positiva os traços negros e funciona para elevar a autoestima das crianças”, analisa.
Saraiva reforça que o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas é lei federal ( Lei 10.639), e o livro do Ziraldo, junto de outros exemplares, como “Menina Bonita do Laço de Fita”, de Ana Maria Machado, e “A bonequinha preta”, de Alaíde Lisboa, assumem essa função de abordar o tema de forma leve. “Censurar nunca é o caminho certo. Se apareceram questões entre os pais, seria um momento de tratar essas dúvidas de forma consciente, e não dispensar o livro dizendo que ele é complexo, porque ele não é”, afirma.
O especialista provoca ainda uma discussão sobre os tipos de livros que se tornam alvo nas instituições de ensino. Segundo ele, algumas referências clássicas com expressões racistas, que teriam motivo para a suspensão, continuam sendo estudadas em sala de aula. “Podemos citar, por exemplo, textos de Monteiro Lobato, em que a personagem Tia Nastácia é discriminada e diminuída. Por que ele continua como material didático, mas Ziraldo é proibido? Por que um livro positivo gera tanto incômodo, mas falas raciais hiper negativas não?”, questiona.
Trechos
Um dos trechos de “O Menino Marrom” citados por alguns pais em Conselheiro Lafaiete trata de um possível pacto de sangue entre os meninos, que não se conclui:
“‘Temos que fazer o pacto de sangue!’. Um deles foi até a cozinha buscar uma faca de ponta para furar os pulsos.”
Ele termina com os protagonistas optando por usar tinta no lugar de sangue:
“Ficaram os dois com as pontas do fura bolos cheias de tinta azul.”
O outro é um pensamento negativo que o protagonista tem em relação a uma velhinha que não aceitou a ajuda dele para atravessar a rua. Mas a ação também não acontece, por se tratar apenas de um pensamento.
Outros depoimentos
Para o cartunista mineiro e especialista em literatura infantil José Carlos Aragão, a medida é uma “manifestação de censura a uma obra consagrada”.
“A literatura não pode ser tomada como um código de conduta, de moral e bons costumes. […] A literatura é arte, uma coisa que vai muito além disso. No máximo, um tema como esse pode ser tomado como um pretexto para um debate amplo e civilizado, que vai promover mais conhecimento”, afirmou.
A decisão do Executivo gerou reações entre pais de alunos e docentes da rede municipal de ensino. Para a professora Marta Glória Barbosa, que dá aulas de português para o ensino médio, a medida é prejudicial para os estudantes.
“É preocupante. Sou professora de português, então, qualquer retirada de livro, para mim, é o cúmulo do absurdo. O livro é espetacular, escrito pelo Ziraldo, que é nosso. Não vejo nenhuma justificativa para essa suspensão”, afirmou.
Nas redes sociais da prefeitura, uma mulher comentou: “Não dá pra acreditar que em 2024 estamos censurando Ziraldo. Esse país está perdido mesmo”, lamentou.
- G1 e O Tempo