Capela Nossa Senhora das Dores guarda pinturas que são um tesouro para o patrimônio histórico e a tradição de fé em Minas, transformando a contemplação da Paixão
Ouro Preto – Choveu muito na estrada, águas pesadas, com granizo exigindo atenção redobrada dos motoristas e correria de quem estava a pé ou de bicicleta, na Rodovia dos Inconfidentes (BR-356), atrás de um abrigo para se proteger da tempestade de outono. Mas quase por encanto, a natureza deu seu espetáculo particular, com céu azul e sol forte na altura do distrito de Cachoeira do Campo, um dos mais antigos de Ouro Preto, na Região Central de Minas. Ali, para um encontro com arte, história, cultura e espiritualidade, a equipe do EM foi diretamente à Capela Nossa Senhora das Dores, de 1761, considerada pioneira no país com essa devoção.
Na quarta reportagem da série “Paixão e fé – Espaços Sagrados”, está no centro das atenções o templo barroco restaurado em 2017, tombado pelo município, pertencente à Paróquia Nossa Senhora de Nazaré e vinculado à Arquidiocese de Mariana. Um dos destaques está no forro, no qual figuram 16 painéis (15 deles em forma de caixotões), de inspiração medieval, representando a Paixão de Cristo.
“Brinco que é a Capela Sistina dos pobres!”, orgulha-se o professor de história da arte do Instituto Federal de Minas Gerais, Alex Fernandes Bohrer, ao comparar as pinturas do singelo templo, erguido pela Ordem Terceira do Monte Calvário, que pedia esmola para fazer igrejas e trabalhava para os pobres, aos extensos afrescos da capela do Vaticano onde o genial artista italiano Michelangelo (1475-1564) deixou para a humanidade sua obra-prima. Natural de Cachoeira do Campo e entusiasta do patrimônio local, Alex Bohrer é autor de vários livros, entre eles “Igrejas e Capelas – Ouro Preto”, em parceria com o jornalista Mauro Werkema e organizado por Paulo Lemos, “O discurso da imagem”, “Ouro Preto: um novo olhar” e “Jesus: Um breve roteiro para curiosos”.
Neste período quaresmal que antecede a Semana Santa e tríduo pascal (13 a 20), o forro da capela dedicada a Nossa Senhora das Dores proporciona, além da contemplação pelo trabalho artístico de autoria desconhecida, um roteiro para se entender a via-crúcis de Jesus. “Tudo nesta capela é maravilhoso. Estas pinturas nos acompanham a vida toda, é um tesouro para nós”, diz a zeladora Dilma Luíza da Silva, que elege a cena do Monte Calvário como sua preferida.
OLHARES NAS ALTURAS
Nos 16 painéis, estão as cenas de Jesus em Jerusalém: o horto das oliveiras, a prisão, Pôncio Pilatos lavando as mãos e se eximindo da responsabilidade pela condenação de Jesus, “Ecce homo” (Eis o homem), palavras ditas em latim, por Pilatos, ao apresentar Jesus aos judeus, cruz às costas, crucificação, descendimento da cruz. Há também a ressurreição.
Mostrando as pinturas, professor Alex ressalta o criativo trabalho do autor, de quem não se tem registro. “Ele envolveu as cenas da Paixão de Cristo numa ‘espiral’, dando movimento ao conjunto da obra. Sem dúvida, é um forro belíssimo, reunindo arte e espiritualidade”, observa.
O forro da nave tem ainda as pinturas de Nossa Senhora do Monte Calvário, Nossa Senhora da Piedade e Nossa Senhora da Soledade, alusivas às dores de Maria. Os painéis se completam com pinturas dos instrumentos do martírio de Jesus, os cravos e a coroa de espinhos, e a figura de Verônica, mulher que enxugou o rosto de Jesus na Via Dolorosa.
DESCOBERTAS VALIOSAS
Em maio de 2017, o EM mostrou o cuidadoso trabalho de restauro da Capela Nossa Senhora das Dores, o qual trouxe de volta, no forro e nas paredes da nave, as pinturas escondidas durante décadas sob várias camadas de tinta – em alguns pontos, até 10 camadas. A maior descoberta ocorreu logo na entrada, no forro do átrio (debaixo do coro), onde a equipe encarregada do serviço trouxe à luz guirlandas em policromia tampadas pelo branco, que deixava à mostra apenas a cena do calvário, correspondente a 10% do trabalho original. Reivindicada pela comunidade e custeada integralmente com recursos do Fundo Municipal do Patrimônio (Funpatri), a obra de restauro foi concluída e entregue em outubro de 2017.
Sete anos antes, quando a equipe de repórteres esteve no local, o tecnólogo em conservação e restauração Rodrigo da Conceição Gomes, então presidente da Associação dos Amigos de Cachoeira do Campo (Amic), alertava para o risco de perda do templo do século 18 e considerado o mais antigo do país dedicado a Nossa Senhora das Dores, “conforme documento do Arquivo Ultramarino de Lisboa, Portugal”.
A obra em 2017 contemplou ainda, na capela-mor, a pintura de Nossa Senhora das Dores, que contém a inscrição em latim Consolatrix afflictorum (Consoladora dos aflitos). Conforme especialistas, pode ser a representação de um ex-voto, ou pagamento de uma promessa por um fidalgo retratado aos pés de Nossa Senhora das Dores. Nas paredes, foi encontrado, debaixo de tinta, um barrado com pinturas marmorizadas, no tom salmão e datadas de 1870-1880, creditadas a italianos que moraram na região no século 19.
REALIDADE E LENDAS
Muitas histórias e lendas rondam a capela construída em 1761 para as cerimônias da Semana Santa. A imagem da santa de roca da padroeira, conforme a tradição oral, chegou a Cachoeira do Campo em meados do século 18 portando várias joias que desapareceram. Contam que, sob os auspícios de uma mulher chamada Maria Dolorosa, a imagem percorria as casas do distrito angariando fundos para a construção da igreja.
Outra antiga lenda afirma que os inconfidentes (participantes da Conjuração Mineira, em 1788-1789) se reuniam no interior do templo para, do alto de sua torre esquerda, espionar o Visconde de Barbacena (governador de Minas durante a Conjuração Mineira) em seu palácio.
No livro “Igrejas e Capelas – Ouro Preto”, há mais informações sobre o templo. “É tradição ancestral que a igreja das Dores foi edificada pelo povo mais simples do arraial que devotava especial fervor ao culto da Paixão e da Semana Santa (…) Há registro de outras interessantes histórias: contava-se que no desenrolar da Guerra dos Emboabas (1708), a população de Cachoeira do Campo, assustada e revoltada pelo grande número de mortes e insepultos em suas ruas, resolveu que durante a madrugada, quando não mais se ouviriam os estampidos da artilharia, arrastaria os corpos até um lugar isolado para, posteriormente, sepultá-los. E assim se deu.”
E mais: “Quando já se fazia noite alta, um grupo de pessoas do arraial penetrou na mata e abriu uma clareira, onde hoje é o Cemitério das Dores, e para lá levou os mortos, tornando desde então aquele lugar conhecido como o local “das dores”, tamanho o sofrimento infligido. Quando das primeiras celebrações da Semana Santa, se fez necessária a construção de uma igreja dedicada a Nossa Senhora das Dores, o local escolhido foi ao lado de cemitério que já existia desde longa data”.
O forro da Capela Nossa Senhora das Dores, em Cachoeira do Campo, apresenta 16 painéis sobre a Paixão de Cristo. Conheça alguns deles:
– Crucificação
– Ressurreição
– Cruz às costas
– Nossa Senhora das Dores
– Descendimento da cruz
Programação
Em Ouro Preto (sede)
– Até 11 de abril: Setenário das Dores de Nossa Senhora, às 19h, na Capela Nossa Senhora das Dores do Monte Calvário. O encerramento será na Basílica Nossa Senhora do Pilar. No dia 12, às 19h, também no Pilar, será o Sábado dos Passos
– Semana Santa, de 13 a 20 de abril: missas solenes, procissões e outras cerimônias. Destaque para o dia 19, às 9h, do Ofício de trevas, no Santuário Matriz Nossa Senhora da Conceição
Em Cachoeira do Campo (distrito)
Até 11 de abril: às 19h, Setenário das Dores da Virgem Maria, na Capela das Dores, no Bairro Santa Luzia. Mais informações no site igrejadasdores.cachoeiradocampo.com.br
– Semana Santa, de 13 a 20 de abril: missas e outras cerimônias. Destaque para a Sexta-feira da Paixão (18), com a via-sacra saindo, às 6h, da Matriz Nossa Senhora de Nazaré em direção à Igreja São Geraldo (Alto do Beleza)
FONTE: ESTADO DE MINAS