A sociedade brasileira sempre foi condicionada a obedecer. O Brasil virou república pela ordem e pelo progresso. Mais pela ordem, pelas decisões políticas tomadas de cima para baixo. O progresso e a participação comunitária ainda são pilares a serem construídos por atores sociais que lutam pela reafirmação da cidadania. Nesse contexto de autoritarismo histórico, torna-se essencial analisar mecanismos que possam assegurar a implementação de políticas públicas preservacionistas participativas e, consequentemente, mais democráticas e descentralizadas.
O poder constituído, na maioria das vezes, é uma estrutura que corrobora com a paralisação do envolvimento comunitário nas decisões políticas. Após 21 anos de golpe militar, instaurado em 1964, a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) foi promulgada em 5 de outubro de 1988 e ficou conhecida como Constituição Cidadã por ser concebida no processo de redemocratização do país.
Em nossa Carta Magna, a noção de patrimônio cultural foi ampliada e assegurou a participação da comunidade na preservação dos bens culturais. O artigo 216 é assertivo: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Entretanto, a lei é uma estrutura estática. Ela precisa ser provocada para que seja dinâmica e estruturada a partir desta perspectiva colaborativa entre o poder público e a sociedade.
Raríssimas ações governamentais propõem ações efetivas e sistemáticas nas decisões de políticas públicas preservacionistas centradas nas demandas comunitárias. Repensar estratégias, voltadas à efetivação de políticas culturais que possam equalizar as estruturas cristalizadas de poder, pode ser um caminho a seguir na tentativa de equilibrar as decisões políticas em consonância com a vontade popular, como a criação de medidas que possibilitem a equidade de oportunidades para os cidadãos construírem, em parceria com os poder público, uma política preservacionista pautada em deliberações conjuntas e dialógicas.
Nossa história não é apenas verde-amarelo e anil. Há muito sangue preto em nossas construções seculares e dizem por aí “quem vive de passado é museu”. Trata-se de uma expressão conhecida, mas totalmente descabida. Os museus abrigam acervos que referenciam o passado, mas sua função social é entender o presente. Na contemporaneidade, torna-se primordial tratar o patrimônio cultural a partir de um olhar atento aos Direitos Humanos, que seja capaz de rever as narrativas oficiais para focar nas memórias subterrâneas dos grupos historicamente vulnerabilizados, como os afrodescendentes e os povos indígenas.
Infelizmente, no Brasil, discute-se mais política partidária do que políticas públicas. Existe uma descrença na palavra política, tão desgastada e mal interpretada pela maioria dos cidadãos. O conceito de política é originário do grego “politikós”, uma derivação de “polis” que significa cidade e “tikós” que se refere ao bem comum. Nesse sentido, a origem da política remota à participação comunitária, à vida em coletividade. Essa acepção é bem diferente do que se costuma pensar sobre política como algo restrito a coligações partidárias e distante do cotidiano das pessoas.
No próximo sábado, (5), a Constituição Cidadã completa 36 anos de promulgação. Existem muitos avanços a serem celebrados, mas é imprescindível analisar o que ainda necessita avançar para que a Carta Magna seja realmente uma norteadora no tocante à preservação do patrimônio cultural. No domingo, (6), milhões de brasileiros vão exercer a cidadania nas urnas. Mas o exercício da condição de cidadão não deve restringir-se ao processo eleitoral, pois a cidadania é um processo em construção.
Nesse sentido, é necessário estabelecer políticas públicas preservacionistas mais participativas que atendam às diretrizes da Constituição de 1988, como o respeito aos Direitos Difusos, a interface entre patrimônio cultural e Direitos Humanos e a municipalização dos artefatos culturais e turísticos. Além disso, é preciso sistematizar ações educativas contínuas centradas na ampliação da participação popular na consolidação de políticas preservacionistas a partir de ações coordenadas, cooperadas e colaborativas entre os poderes constituídos e a sociedade.
Éverlan Stutz é jornalista, professor e especialista em Gestão do Patrimônio Cultural pela PUC Minas. Entre os dias 24 a 27 de setembro, coordenou o Fórum do Patrimônio Cultural: política e cidadania nas cidades de Ouro Branco e Ouro Preto. A iniciativa contou com o apoio do Ministério Público de Minas Gerais.
Fotos legendas para ilustrar o artigo:
No II Fórum do Patrimônio Cultural de Ouro Preto foram aprovadas 18 diretrizes para preservar os bens culturais do município
O II Fórum do Patrimônio Cultural de Ouro Branco ocorreu em 24 de setembro na Câmara Municipal
O I Fórum do Patrimînio Cultural de Ouro Branco foi realizado em 21 de setembro de 2016 na Câmara Municipal
Cartas de Apoio do Ministério do Ministério Público de Minas Gerais:
Dr.José de Lourdes São José (Ouro Branco/2016)
Dr.Edvaldo Alves dos Santos Júnior (Ouro Branco/2024)
Dr.Fernando Mota Machado Gomes (Ouro Preto/2024)