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Interesses de deputados e pressão do governo Zema impedem abertura de CPIs da mineração em MG

Entenda como funciona o aparelhamento do Estado pelo setor minerário

Com a deflagração da Operação Rejeito da Polícia Federal (PF), que investiga casos de fraude, lavagem de dinheiro e corrupção na atuação do setor minerário em Minas Gerais, deputados estaduais e federais se mobilizam pela abertura de comissões parlamentares de inquérito (CPI) nas casas legislativas para apurar sobre os processos de licenciamento ambiental. 

As duas primeiras iniciativas foram encampadas pelas deputadas estadual Bella Gonçalves (Psol) e federal Duda Salabert (PDT). Elas estão coletando assinaturas de seus colegas de legislaturas para a instauração do instrumento de fiscalização na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e na Câmara dos Deputados, respectivamente. 

Passadas duas semanas desde o início da operação da PF, que expediu 79 mandados de busca e apreensão, determinou 22 prisões preventivas e bloqueou R$ 1,5 bilhão em bens de empresas, empresários e servidores públicos ligados à mineração no dia 17 de setembro, as CPIs ainda não foram abertas no legislativo estadual nem no federal. 

Resistência de deputados ligados à mineração

Na ALMG, para uma comissão do tipo ser instaurada, é necessário o pedido de pelo menos 26 dos 77 parlamentares. Ou seja, apenas um terço da Casa. Mas, segundo Gonçalves, o maior desafio tem sido justamente conseguir o apoio dos colegas, que, na avaliação dela, temem que as investigações sobre a corrupção sistêmica no sistema de meio ambiente respinguem nos próprios deputados. “Além disso, há uma pressão do governo estadual, sob gestão de Romeu Zema (Novo), para não ser investigado”, denuncia. 

De acordo com Salabert, o mesmo ocorre na Câmara Federal. “Muitos parlamentares não querem assinar, porque estão mais comprometidos com a mineração do que com os eleitores. Para perceber isso, é só olhar para a composição da Comissão de Minas e Energia, na qual boa parte dos deputados, especialmente os de Minas Gerais, defende mais as mineradoras do que o povo”, enfatiza.

Entre os investigados pela Operação Rejeito estão Gilberto Henrique Horta de Carvalho, que foi candidato ao Conselho Federal de Engenharia e Agronomia de Minas Gerais (Crea-MG) em 2023 com apoio de Jair Bolsonaro (PL) e do deputado federal Nikolas Ferreira (PL), além de ter relações políticas com o deputado estadual Bruno Engler (PL), para quem atuou como coordenador de campanha. 

Outro investigado é o ex-presidente da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) Rodrigo Franco, que, segundo informações divulgadas amplamente pela imprensa, antes de ser preso pela PF, afirmou que “não cairá sozinho” e que “seguia ordens”. Ele havia sido afastado do cargo no governo Zema apenas quatro dias antes da deflagração da Operação Rejeito. 

Para Salabert, a relação de representantes políticos com a organização criminosa revelada pela PF só reafirma a importância das comissões parlamentares de inquérito, como forma de o legislativo encarar o tema. 

“Eu tenho certeza de que o desenrolar da Operação Rejeito vai separar o joio do trigo e mostrar quem realmente quer enfrentar o crime organizado e a mineração ilegal. A mineração tem um lobby muito forte. Os documentos da Operação Rejeito mostram isso com clareza. Existe um comportamento de máfia que atravessa toda a cadeia da mineração e chega até a política e os poderes. A CPI é o instrumento mais necessário para desmontar essa teia”, defende a deputada federal.

Bella Gonçalves vai além e diz que a abertura de uma CPI na ALMG pode, inclusive, evidenciar movimentações legislativas que facilitaram o estabelecimento da organização criminosa vinculada à mineração.

“Há leis que flexibilizam o licenciamento ambiental, atos que dificultam a construção de áreas de proteção, entre outras medidas que implicam diretamente o poder legislativo. A CPI é uma demanda da sociedade, que quer ver o poder legislativo exercendo a sua competência de fiscalização de um Executivo que, além de ser conivente, participou de atos de corrupção para liberar o roubo de minério de ferro, a destruição das nossas montanhas, a violação de direitos das comunidades, em nome do lucro e das propinas pagas a pessoas que estavam ali como servidores públicos”, argumenta. 

Estado aparelhado

Do outro lado, o governo Zema e o empresariado mineiro apostam na estratégia de afirmar que defendem o andamento das investigações, mas que não se pode tratar as revelações da Operação Rejeito como algo sistêmico. Em nota, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) chegou a dizer que não se pode permitir a “demonização de todo o setor mineral”. 

Porém, servidores do Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Sisema) de Minas Gerais, em greve desde o dia 1º de setembro, afirmam que, na realidade, a ação da PF evidencia algo já denunciado pela categoria e pelos movimentos ambientalistas do estado: a corrupção do setor minerário chegou ao Palácio da Liberdade — ou à Cidade Administrativa.

“São muitas contradições. A primeira é a própria narrativa política do governador, que diz que tem uma ‘gestão técnica e norteada pela ciência’ e que ‘não faz política’. Mas a Operação Rejeito mostrou cargos de confiança nomeados por ele fazendo gestões nada técnicas. Não possuem formação e nem são referências nas áreas em que foram colocados para comandar, mas têm um histórico de envolvimento político com associações e entidades ligadas aos setores produtivos”, denuncia o presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Meio Ambiente no Estado de Minas Gerais (Sindsema-MG), Wallace Oliveira .

Para Oliveira, durante as gestões de Zema, houve um aparelhamento das estruturas do Estado relacionadas ao meio ambiente por parte da mineração, mas também do agronegócio, da indústria, de sindicatos patronais e de pessoas ligadas a outros setores produtivos. Segundo ele, isso se expressou na presidência da Feam, mas se dá também nas chefias e unidades regionais.

Outro problema, ainda de acordo com o representante dos servidores do meio ambiente, é a desestruturação do Sisema, que enfrenta 12 anos sem concurso público; ausência de profissionais de carreira; defasagem salarial e evasão de profissionais; e interferências no ofício dos trabalhadores, dificultando a atuação dos órgãos que compõem o sistema na fiscalização do setor minerário. 

“Também é por isso a nossa greve, já deflagrada há um mês, antes da Operação Rejeito e tudo isso vir à tona. Estávamos convivendo com a estranheza de certos procedimentos, de ordens que são dadas, de pressões que são feitas e que não se sustentam com base na ciência ou nas melhores práticas técnicas”, continua Oliveira.

Como funciona na prática

Se você é um servidor público de carreira, com formação e experiência, atuando nos órgãos ambientais que analisam processos sensíveis, como são os empreendimentos minerários, se preocupa em garantir a realização correta de procedimentos técnicos — sem os quais impactos podem ser drásticos, a exemplo dos rompimentos de barragens de Brumadinho e Mariana. Porém, o que Wallace Oliveira relata é que, na dinâmica imposta pela gestão Zema, esse fluxo é constantemente fragilizado por pressões e perseguições. 

“É muito comum as chefias receberem um parecer técnico que elas têm discordância, mas elas não rebatem aquilo, não escrevem sobre e nem assinam uma nova determinação com o seu nome. Elas colocam pressão, perseguem, fazem múltiplas reuniões, insistem, muitas vezes entram no sistema e editam o parecer de terceiros sem pedir a permissão ou passar o processo para outro analista. Não existe a responsabilização administrativa de quem tem esse tipo de conduta”, descreve. 

Ele explica que o fluxo correto deveria ser: o analista faz um parecer técnico; entrega à chefia; e, se a chefia tem alguma discordância técnica, ela deve documentar essa discordância, de forma que o analista fique resguardado sobre a atividade que ele exerceu e fique comprovado que foi a autoridade superior que compreendeu o caso de outra forma. 

“Mas essa memória não existe nos nossos processos. Esse procedimento não é feito. O que acontece é perseguição e pressões externas. Se eu [a chefia] não gostei do resultado do seu parecer, com uma conduta totalmente anti-transparente e até de improbidade administrativa, eu tiro de você esse parecer e mando para outro todo o trabalho que você ficou fazendo durante meses”, denuncia Oliveira.  

“Quando atuamos na fiscalização, existem casos de chefias questionando e fazendo uma defesa do autuado antes mesmo de o processo ser remetido ao autuado. Ou seja, a primeira defesa de certos autuados é interna,  por parte dessas chefias”, continua. 

Segundo o presidente do Sindsema-MG, a principal argumentação por trás das práticas de assédio e descredibilização de fontes técnicas seria para que os processos caminhem de “forma célere”, mas, na verdade, de acordo com ele, o que existe é a “pressão da encomenda”. 

“Há uma lógica do  ‘ó, esse processo tem que sair rápido’, ‘isso é a nossa prioridade’. Mas essa prioridade não é embasada em norma, não é embasada muitas vezes nem em algo escrito. É uma ordem de boca para que você passe na frente e quebre o princípio da isonomia, por exemplo”, explica. 

“São várias atitudes e condutas que não são isoladas, que não são apenas do licenciamento, absolutamente comuns dentro do sistema, que abrem uma brecha enorme para esse tipo de ocorrência que agora ganha luz na sociedade, com a Operação Rejeito. E as pessoas que fazem isso são muito bem pagas. Existe remuneração, em forma de propina, de milhares de reais para que as pessoas conduzam desse jeito dentro do setor público”, finaliza.

No dia 17 de setembro, o governo de Minas exonerou três servidores apontados como envolvidos no processo de corrupção — Arthur Ferreira Rezende Delfim, diretor da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), preso na operação; Fernando Baliani da Silva, diretor de Gestão Regional da Feam, alvo de mandados de busca e apreensão; e Breno Esteves Lasmar, diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas (IEF), alvo de busca e apreensão. Os três ocupavam cargos de confiança e tinham salários entre R$ 9 mil e R$ 13 mil.

O que ganhou luz

A Operação Rejeito evidenciou fragilidades em processos ambientais emblemáticos para o estado. Um deles é o caso da Serra do Curral, cartão-postal da capital mineira que, além do valor cultural e simbólico, é essencial para o abastecimento hídrico da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). 

A área convive há anos com disputas da mineração no território e com a atuação ilegal de empreendimentos. Segundo as investigações da PF, um grupo ligado à organização criminosa denunciada utilizava empresas de fachada, articulação com figuras políticas e o corrompimento de servidores públicos para explorar minério de ferro na região.

Além disso, entre os apontados como supostos líderes do esquema revelado pela Polícia Federal também está Alan Cavalcante, proprietário da Fleurs Global Mineração, empresa que enfrentou no último período uma sequência de embates para atuar na Serra do Curral. Ao todo, a companhia coleciona 17 acusações de crime ambiental. Mesmo assim, no ano passado, o governo Zema autorizou a mineradora a operar no território. 

Controle legislativo e social

É diante desse cenário, que a deputada Bella Gonçalves reforça a necessidade de abertura da CPI. Ela enfatiza que está nítido o caráter sistêmico do problema evidenciado pela Operação Rejeito. “E, se é sistêmico, não para no objeto da Operação Rejeito. É muito mais profundo e exige ações também do poder legislativo.”

O mesmo é defendido pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), que destaca que o que foi revelado pelas investigações da PF até agora é apenas a “ponta do iceberg” de um problema ainda mais profundo, também sistematicamente denunciado pelos movimentos sociais e comunidades atingidas por empreendimentos minerários. 

“Podemos citar vários outros exemplos de como a situação é complexa e a CPI teria um papel central de dar  visibilidade a uma série de denúncias que precisam ser averiguadas. Um dos investigados pela Operação Rejeito também tem relação com uma ONG que atuou para facilitar a redução da área de proteção ambiental (APA) do Lagoão, em Araçuaí, para avançar com a extração de lítio. A empresa que faz a exploração do lítio não foi citada na operação da PF, mas houve facilitação da exploração”, cita Júlia Sanders, integrante do MAM. 

Além das denúncias de casos suspeitos, Sanders destaca que a CPI pode ajudar a dar visibilidade à situação concreta vivida pelas pessoas impactadas pela atuação das mineradoras em seus territórios. 

“Esse mecanismos pode nos ajudar a pensar outros modelos de licenciamento e de política ambiental, pautados na escuta e no controle social, uma vez que as comunidades atingidas são as que mais conhecem as violações que a mineração realiza no território e essas violações não estão desconectadas da atuação espúria do poder público em favor do capital mineral”, explica.

A advogada Fernanda Tomaz também defende a instauração das comissões parlamentares de inquérito sobre o tema e argumenta que esse mecanismo democrático não trará nenhum mal social. Por isso, ela também questiona o porquê da dificuldade da abertura das CPIs.  

“Precisamos evidenciar ainda mais os escândalos e as violações de direitos humanos. Antes, era tudo muito por baixo dos planos. Já estamos avançando, mas precisamos seguir mostrando à população em geral o que está acontecendo. O que está acontecendo em Minas tem tudo a ver com o cenário nacional. Temos um Congresso Nacional com muito medo de ser investigado. É daí que vem, por exemplo, a PEC da Blindagem”, avalia. 

“Essa discussão também reforça na sociedade mineira e brasileira que o modelo de mineração que existe atualmente está falido.  Esse modelo socializa os estragos e os danos, Mas concentra qualquer tipo de riqueza. Se você for em qualquer território minerado não existe socialização mínima dos lucros do empreendimento”, finaliza a advogada, que também é membra do MAM.

O outro lado

Brasil de Fato MG entrou em contato com o governo de Minas e com a Fiemg para comentar sobre as denúncias, mas não obteve respostas. O texto será atualizado caso haja um posicionamento.

Editado por: Elis Almeida

FONTE: BRASIL DE FATOS

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