Depois da tragédia em Brumadinho, moradores de Congonhas, em Minas Gerais, passaram a semana apreensivos, com um olho no noticiário e o outro na barragem que paira sobre sua cidade, cinco vezes maior que a que rompeu.
Desde 2013 a cidade luta contra a barragem Casa de Pedra, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). A resistência havia se acirrado depois do desastre de Mariana, em 2015 – e deu margem a pânico na última semana, enquanto moradores acompanhavam as centenas de mortes e desaparecimentos em Brumadinho.
“Eu fiquei traumatizada. Eu acordo assustada. Tive pesadelo com a minha menina, nem a deixo sair de perto de mim”, diz Adilene Resende, com uma de suas duas filhas no colo, ao lado de um grupo de vizinhos. “A gente mora bem debaixo da barragem. Estou morrendo de medo, não só por mim, mas por todos aqui.”
Adilene mora no Residencial Gualter Monteiro, bairro popular mais próximo à barragem – as casas mais próximas ficam a apenas 250 metros de suas paredes. Em Brumadinho, o refeitório e a área administrativa da Vale, que foram engolidos pela lama, ficavam a dois quilômetros da barragem que rompeu.
Segundo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) de Minas Gerais, a estrutura é classificada como Classe 6, a mais alta em categoria de risco e de dano potencial associados.
Em entrevista à BBC News Brasil em Congonhas, o prefeito José de Freitas Cordeiro afirmou que se reuniu nesta semana com diretores da CSN – e que a companhia se comprometeu a iniciar o processo de desativação da barragem até o fim deste ano, mudando o processo de produção do minério de ferro para focar no rejeito a seco, que não precisa de barragem.
O anúncio, segundo Cordeiro, é uma boa notícia, mas por enquanto é “acordo de boca”. Contatada pela BBC News Brasil, a empresa não quis se pronunciar.
O prefeito está no cargo há seis anos e vinha negando um pedido da CSN de altear a barragem, que tem 76 metros de altura, em mais 11 metros.
“É uma represa que dá medo. É um monstro que está em cima de Congonhas”, diz o prefeito, conhecido como Zelinho.
Infiltração e ‘risco de rompimento’
A Casa de Pedra está em operação há 15 anos e foi construída a jusante, enquanto as barragens que estouraram em Brumadinho e em Mariana foram construídas a montante -técnica que não está mais sendo permitida em Minas Gerais, ressalta Cordeiro.
“A empresa diz que a construção é moderna e que não existe risco. Mas a barragem de Brumadinho também não tinha risco, de acordo com o laudo de setembro (que atestava a sua estabilidade da estrutura da Vale). Então acho que não existe risco zero em represa nenhuma”, considera o prefeito da cidade.
O Ministério Público de Minas Gerais já constatou problemas na estrutura da Casa de Pedra duas vezes, em 2013 e 2017. Um parecer do órgão em outubro de 2017 apontou risco de rompimento e determinou uma série de medidas corretivas.
Segundo o promotor Vinícius Alcântara Galvão, a CSN cumpriu as exigências na época, e perícias posteriores confirmaram a estabilidade da barragem.
Porém, ele destaca que laudos de estabilidade têm curta duração, já que barragens são estruturas dinâmicas, e a fiscalização deve ser constante.
“A população de Congonhas vive apreensiva”, diz Galvão. “Tivemos oportunidade de fazer duas atuações preventivas. Debelamos dois focos de incêndio. Se não tivessem sido debelados da forma como foram, na hora certa, poderiam ter se convertido em dano efetivo, em mortes, desastre. Se essa estrutura viesse a romper, seria um seria um dos maiores acidentes da humanidade”, alerta Galvão.
Ele estima que 5 mil pessoas poderiam ser afetadas se a barragem rompesse. “A cidade não pode conviver com esses riscos e com essa apreensão.”
Um dia antes de o acidente em Brumadinho, Galvão solicitou uma nova perícia na barragem – e aguarda o laudo com o seu resultado.
Patrimônio mundial
Congonhas é uma das cidades históricas de Minas Gerais, famosa pelo Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, cercado por esculturas do Aleijadinho e reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco.
Do mirante da igreja, construída no século 18, vê-se a barragem, que pode ser avistada da maior parte da cidade de 54 mil habitantes.
A semana após o acidente em Brumadinho foi de intensa mobilização no município. Na terça-feira, cerca de 3 mil pessoas se reuniram na associação de moradores do Residencial Gualter Monteiro, em um encontro com discursos inflamados que acabou enchendo toda a rua.
Na quarta, um grupo e lideranças comunitárias foram à sede da CSN entregar uma carta enumerando seus pleitos – entre eles, o reassentamento imediato de moradores das áreas mais próximas à barragem em face da incerteza -, mas não foram recebidos.
“A empresa não tem a menor abertura para diálogo com a comunidade e nem com a imprensa”, diz Sandoval de Souza Pinto Filho, diretor de Meio Ambiente e Saúde da União das Associações Comunitárias de Congonhas (Unaccom).
Aposentado após 30 anos de atuação como técnico em usinas de beneficiamento de minério, Pinto Filho vem fazendo alertas contra a barragem há uma década, mas era taxado de alarmista. “O pessoal está acordando. É bom que seja antes de a barragem romper”, afirma.
Ele entrou com representação no Ministério Público em 2013 e em 2017, depois de ser procurado por moradores afirmando que a barragem estava minando água, ou seja, tinha pontos de infiltração. As representações deram origem aos dois inquéritos civis do MP-MG contra a CSN – e aos reparos feitos pela empresa em resposta. Motivaram também uma interdição da mina pelo Ministério do Trabalho, em 2017.
“A barragem demanda muito cuidado por sua posição geográfica e proximidade do centro. Se em Córrego do Feijão tivemos centenas de vítimas, aqui começaríamos a contar pelo milhar”, afirma Pinto Filho.
Ele considera que o acordo de boca anunciado pelo prefeito só terá valor quando for apresentado oficialmente pela empresa, com um cronograma detalhado e uma estratégia esmiuçada.
“Precisamos de uma solução segura e confiável, que seja comunicada com clareza à população, para que ninguém continue morando com dúvidas. Porque, diante da dúvida, estamos vendo pessoas vendendo suas casas, mas ninguém quer comprar”, diz Pinto Filho.
A mina e o bairro
A Casa de Pedra começou a ser explorada em 1913, muito antes da fundação da CSN, em 1941, pelo governo Getúlio Vargas, e incorporou a mina cinco anos depois. A mineradora, hoje a segunda maior siderúrgica do país, foi privatizada em 1993.
Quando o conjunto popular foi construído, nos anos 1980, a barragem de mineração não existia. Os moradores lembram apenas da represa de água que pertencia à mina, bem mais afastada do local.
“Tinha uma lagoa lá onde pessoas iam passar o fim de semana com a família, era muito verde, muito bacana. Mas com o passar do tempo, foi trocada pela barragem, que foi se expandindo. E a população ficou espremida aqui”, diz Wagner Hermano Silva Firmino, que trabalha na CSN e é um dos moradores da área logo abaixo da barragem. Sua casa fica próxima à sirene instalada como parte do plano de evacuação.
“Os moradores chegaram primeiro. Mas o poder falou mais alto que a população”, considera Firmino.
O plano de emergência foi elaborado depois da ruptura da barragem da Samarco em Mariana, em novembro de 2015, que matou 19 pessoas e se tornou o maior desastre ambiental do Brasil.
Hoje há placas espalhadas pelo bairro indicando a rota de fuga. Firmino diz que não houve lá muita adesão da população nas duas simulações convocadas pela empresa para ensinar os moradores o que deveriam fazer em caso de uma ruptura.
“A população não acreditou muito, não. Não foi muita gente. Primeiro tivemos Mariana, e agora Brumadinho… O pessoal perdeu a confiança totalmente. Porque a sirene nem soou.”
Firmino se pergunta o que faria com a sua mãe, que teve três AVCs e tem dificuldade para andar, e mora próximo à fronteira do bairro com a barragem, se a sirene soasse. “E se eu estiver no trabalho?”, questiona. “E os idosos, as crianças na creche, as pessoas que têm problemas de saúde, como fariam?”
Rita Resende faz a mesma pergunta. Ela mora ao lado de Adilene, sua irmã, nas casas do Residencial Gualter Monteiro mais próximas à parede da barragem. Entre as duas famílias, são nove crianças.
“Como é que eu vou correr com meus sete meninos se a barragem estourar?”, pergunta Rita. “Eu não quero que nenhum dos meus meninos morra. A comunidade inteira está assustada. Estamos pedindo para os órgãos competentes tomarem alguma providência”, diz, nervosa, com os filhos aglomerados na barra da saia enquanto dá de mamar para a recém-nascida da família.
“Irresponsabilidade”
Para o prefeito José de Freitas Cordeiro, a barragem jamais poderia ter sido construída naquele local.
“Está em cima de um bairro que já havia sido instalado. É uma irresponsabilidade muito grande dos órgãos ambientais terem aprovado essa represa. Só mesmo em países subdesenvolvidos que isso pode acontecer”, critica o prefeito, que tomou posse em 2012, quando a última expansão da barragem foi concluída.
Desde 2014, a CSN tenta obter uma licença ambiental para aumentar o tamanho da barragem mais uma vez. O alteamento seria de 11 metros, passando dos atuais 76 metros de altura para 77, de acordo com a prefeitura.
O processo está em análise junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente mas gerou indignação entre a população local. O prefeito assumiu o compromisso de se manter contra a medida. Se o descomissionamento da barragem da CSN for confirmado, a briga em torno do alteamento deve ser deixada para trás.
Para a população, entretanto, diante da devastação causada pelo colapso da barragem em Brumadinho, não se pode esperar que a decisão fique para depois.
“Precisamos de uma solução de imediato”, diz Maria Augusta Fernandes Emediato Pereira, de 49 anos. “Depois de Mariana, as autoridades tomaram algumas atitudes, mas não foi o suficiente. Brumadinho reacende a preocupação. Mas o problema é que depois cai no esquecimento. Isso não pode acontecer novamente.”
Viúva, ela mora em Cristo Rei, o segundo bairro mais próximo à barragem, com as duas filhas, Ana Júlia, de 18 anos, e Maria Gabriela, de 8 anos. Elas estavam de férias em Porto Seguro quando a barragem de Brumadinho rompeu. A caçula não queria voltar para casa de jeito nenhum. “Tenho medo”, diz sobre a estrutura.
Até as duas tragédias, a família não atinava para o que estava por trás daquelas paredes de terra, cobertas por uma gramínea verde, que avistam da varanda. “Só depois da tragédia a gente se deu conta do estava do lado da nossa casa”, assusta-se a jovem Ana Júlia.
Maria Augusta já pensou em se mudar com as filhas, mas diz que essa não seria uma solução. Afinal, o bairro continuará ali. Ela gostaria que a barragem fosse esvaziada e reintegrada à natureza. “As vidas têm que valer mais”, diz.
Fonte: BBC