Entrevista de João Sette Witaker, professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, concedida ao Jornal GGN.
“Um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que o déficit habitacional no Brasil chegou a 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017. Por outro lado, pesquisa da Fundação João Pinheiro, com base em dados do IBGE, diz que há pouco mais de 7,9 milhões de imóveis vagos em todo o País.
A pergunta óbvia que permanece é: por que apesar do número de imóveis vagos ser superior ao número de famílias precisando de casas, ainda há tanta casa sem gente e tanta gente sem casa? Para entender um pouco mais sobre como funciona esse tipo de mecanismo de exclusão nas cidades brasileiras, falamos com João Sette Witaker, professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Jornal GGN – Por que há tanta casa sem gente e tanta gente sem casa?
A casa em si é um produto que tem a particularidade de ser extremamente cara. E o que é caro na construção da residência não é a casa em si, porque as pessoas até conseguem produzi-las, ainda que precariamente, com pouco dinheiro. Via de regra, as casas autoconstruídas na favela, ou nos loteamentos periféricos, são bem feitas, mas geralmente insalubres e em um ambiente urbano precário. A casa que a gente fala que é cara é uma construção inserida no espaço urbano com infraestrutura e serviços, que é onde está o meio de vida das pessoas. Ela é cara por uma razão muito simples: oferecer a rede sistêmica de infraestruturas que a transforma num lugar bom de se morar é muito custoso. Custa muito fazer uma linha de metrô, um corredor de ônibus, um coletor tronco de esgoto com uma estação de tratamento, levar água, fazer hospitais, fazer escola, e além disso é necessária uma política macroeconômica que ofereça emprego, que dê condições para a pessoa viver, pagar o transporte público, etc. Então, a casa é dependente da estruturação da política pública como um todo, e é por isso que quando a gente fala em política habitacional, a gente sempre está falando em política pública.
Jornal GGN – O fato é que, sem esse contexto urbano, não se tem a qualidade de vida necessária?
Exatamente, a casa que a gente entende como sendo a necessária é aquela que tem facilidades e propicia um razoável grau de qualidade de vida. São coisas aparentemente muito simples e diretas como o carteiro entregando a carta na sua casa, ou um caminhão de lixo pegando seu lixo na frente do portão. Estamos falando de eletricidade, água, esgoto chegando no lar das pessoas. São coisas básicas, e o Brasil, apesar de ser a décima economia do mundo, não consegue oferecer isso de forma generalizada, nem mesmo nas suas mais modernas cidades. Mas, também, pode ser algo mais indireto como a efetividade dos serviços prestados, o fato de haver escolas próximas, haver comércio, ou onde se possa comprar comida facilmente, além de algo primordial que é o emprego próximo de casa. Então, quando se fala que não tem casa para todos, não significa falarmos somente do abrigo, significa a casa dentro desse contexto urbano. É por isso que dizemos que a questão urbana e habitacional deveria estar no centro da agenda política nacional, pois é a partir dela que se estrutura a vida das pessoas.
Jornal GGN – Acontece nas cidades algo análogo a outras esferas da sociedade neoliberal, as elites pagam por essa qualidade de vida urbana e as camadas populares vivem na espoliação?
A riqueza individual permite, eventualmente, resolver essa questão da casa porque permite que uma série desses elementos sejam substituídos pelo serviço particular. Se o cidadão tem muito dinheiro, ele consegue escola particular, hospital particular, e um automóvel particular que o levará para onde quiser ir. Portanto, esse cidadão conseguirá substituir aquilo que é caro pagando do próprio bolso por uma oferta que é dada pelo mercado, escondendo ainda assim muitos subsídios públicos (para toda a estrutura que o carro necessita, por exemplo). E alguém pode se perguntar: onde está o problema nisso? O problema é que uma parte dessa oferta pode até vir do mercado, mas a outra parte é resultado da oferta pública, ou seja, da localização, que é, como dizemos, produzida socialmente. A localização é mais cara quanto maior e melhor for a infraestrutura oferecida no lugar em que ela está localizada.
Aqui é onde se escancara a perversidade de acesso à casa dentro do capitalismo: a melhor localização, que é a mais cara e só pode ser adquirida pelos mais abastados, é produzida publicamente, porque é onde há infraestrutura pública, onde tem equipamentos públicos, onde tem metrô, tem água, tem tudo. Eis o nó da questão: é nesse ponto que deveria haver intervenção do Estado dizendo que o alto preço do imóvel e da terra se deve às infraestruturas criadas por ele com o dinheiro de todos. Então, deveria ser o Estado a regular essa oferta para garantir, por um lado, que ela seja homogênea em toda a cidade e, por outro, subsídios para ajudar o acesso a boas localizações para os mais pobres.
Nas sociedades reguladas do chamado capitalismo “desenvolvido”, que viveram ao menos 30 anos sob uma lógica keynesiana de forte intervenção do Estado, o poder público conseguiu equilibrar a oferta de infraestrutura e serviços com o acesso à casa em toda a cidade, de forma razoavelmente homogênea. Mas, na periferia do capitalismo, como aqui no Brasil, o Estado nunca fez essa regulação, porque a lógica era outra. Nunca houve a necessidade econômica de se constituir uma sociedade ampla de consumo mas, ao contrário, precisava-se manter o atraso e a pobreza como combustíveis de uma modernização incompleta, que servia perfeitamente aos interesses das nossas elites. Do ponto de vista urbano, o resultado foram cidades – fora dos exclusivos bairros ocupados pelas elites – deixadas à livre-ocupação pela população mais pobre, com a autoconstrução de suas casas e sem infraestrutura. Então, ao longo dos anos, acumulou-se esse passivo social de milhões de pessoas que não conseguem ter acesso à moradia.
Jornal GGN – E em que momentos essa regulação aconteceu?
O capitalismo nos países centrais do sistema (Europa e América do Norte), após a grande depressão dos anos 30, precisou racionalizar-se para constituir sociedades de consumo de massa com uma classe média majoritária, capaz de fazer girar, pelo consumo, a roda de produção e reprodução do capital. Na crise dos anos 30, o capitalismo forçou demais a barra no rebaixamento dos salários, ao mesmo tempo em que, por outro, multiplicava o volume de produção, necessitando promover seu consumo para garantir a acumulação do capital e seu reinvestimento em mais produção. Assim, os salários dos trabalhadores, em termos gerais, não permitiam que consumissem aquilo que o próprio capitalismo produzia. Para que isso não ocorresse, estruturou-se naquelas economias, seguindo a cartilha keynesiana, um sistema fortemente regulado pelo Estado para garantir as condições mínimas de acesso aos bens produzidos: salário-mínimo, limitação das horas de trabalho, descanso remunerado, etc. Dentro desse esforço incluía-se a casa, essencial para dar condições de consumo. A esse modelo deu-se o nome, um tanto eufemístico, de “bem-estar social”. Está certo que o neoliberalismo infligiu um duro golpe a esse modelo, e hoje a desigualdade está cada vez mais premente também nos países ditos “desenvolvidos”.
No caso do Brasil, e nos países em desenvolvimento de maneira geral, nunca houve a necessidade de constituir uma sociedade de consumo de massa, porque o nosso consumo era, ao longo do nosso processo histórico, essencialmente voltado para fora, e para uma pequena parcela da população de mais alta renda. Nós éramos – e ainda somos – exportadores de commodities e do agronegócio ou, eventualmente, produtores de mão de obra barata, tal qual é a China de hoje. Tanto para exportarmos matéria-prima, como para produzimos produtos industrializados voltados para o exterior, não houve estruturalmente a necessidade da formação de um mercado de consumo de massa. Muito pelo contrário, era interessante manter a população pobre como um exército industrial de reserva. Como disse Chico de Oliveira, as favelas foram a expressão da necessidade de rebaixamento dos custos da força de trabalho. As elites, quanto a elas, se concentraram em bairros ditos “nobres” que, estes sim, por conta de um Estado instrumentalizado para beneficiar os seus interesses, receberam sempre toda a infraestrutura necessária, segregando os mais pobres para fora deles.
O mercado imobiliário só produziu para a população mais abastada, porque era mais lucrativo, mas ao mesmo tempo, o Estado também não garantiu que a enorme massa de trabalhadores sem moradia fosse atendida. Essa é a razão estrutural para haver tanta gente morando em periferias distantes, tanta gente pedindo casa e tão pouca casa oferecida. O BNH produziu 4 milhões de unidades em vonte anos, mas na maioria acabaram, por serem pagas, não beneficiando a população mais pobre. Recentemente, o Programa Minha Casa Minha Vida conseguiu, pela primeira vez, oferecer quase dois milhões de casas para essa população. Porém, a questão da boa localização, que esbarra no entrave da terra, não conseguiu ser equacionada, assim como a da qualidade das moradias produzidas.
Jornal GGN – Com tanta gente sem casa, por que tantos imóveis vazios?
Como já dito, na lógica patrimonialista da sociedade brasileira, o Estado não tem interesse em regular a economia no sentido do interesse público, daquilo que é bom para a maioria. Quando isso ocorre, quando governos de esquerda conseguem administrar cidades, percebemos que a correlação de forças políticas no Brasil está longe de ser favorável aos interesses da maioria. Ao enfrentar privilégios, esses governos raramente conseguem durar mais de um mandato, tal a força reativa dos setores dominantes. Agora, chegamos ao fundo do poço, com a eleição de governos que abertamente renegam qualquer compromisso de justiça social, com apoio popular.
Assim, com o domínio de uma lógica em que se confunde o interesse público com os interesses de alguns grupos privilegiados, é muito mais fácil implementar parklets, que vão tornar bacana o espaço público dos bairros nobres, do que levar saneamento básico para as periferias, para gente que está morrendo por que a casa desmorona na hora da chuva. A gente constrói uma via a mais na Marginal e todo mundo acha o máximo, uma política para os 30% que usam o automóvel, quando com o mesmo dinheiro poderia se fazer 10 km de metrô, meio de transporte usado por 70%. Isso só acontece porque a sociedade está condicionada a confundir o bem público com uma lógica de “vou fazer funcionar para o meu interesse próprio ou do meu grupo”, mesmo que isso, economicamente, seja um entrave ao desenvolvimento.
Então, o gargalo principal é que a máquina pública no Brasil constitui um amálgama de dificuldades administrativas, burocráticas e políticas que impede a realização da política pública reguladora. Mesmo quando alguém tenta fazer essa política funcionar, chega o vereador que está acostumado com o clientelismo e com a corrupção, chega o setor do poder jurídico e judicial e que está acostumado a fazer lawfare, em utilizar a justiça para satisfazer interesses e chega o burocrata administrativo que está acostumado fazer procedimentos corruptos para satisfazer os seus interesses, os de políticos corruptos e juízes.
Então, por que tem tanta casa sem gente e tanta gente sem casa? Por que tem quase 5 milhões de casas vazias nas áreas centrais? Casas sem uso são antieconômicas, pois não fazem uso do dinheiro público investido nas boas localizações em que se encontram. Mas como o que determina a lógica de ocupação e uso do solo é a lógica de mercado, e não a da regulação pública, o poder público não consegue determinar que sejam usadas. Os instrumentos criados para isso no Estatuto da Cidade em 2001, como o PEUC – Parcelamento, Edificação ou Uso Compulsórios, foram pouquíssimo utilizados até hoje. Quando aconteceu, como na gestão de Haddad em São Paulo, logo foram interrompidos na gestão seguinte. Assim, imóveis sem uso são deixados ao abandono porque a propriedade é sagrada, os juízes a protegem, e o Estado não tem o menor poder de regulação para punir, multar ou mesmo desapropriar para dar-lhes o uso social que mereceriam.
Ao mesmo tempo, não se faz nada ou quase nada para simplesmente melhorar as condições de vida dos bairros precários, uma solução mais simples do que ter que construir mais e mais, que passa pela realização de serviços básicos. Só que a lógica que manda, que dita a política pública, que favorece o mercado, é a de não olhar para soluções reais de melhorai social, mas para “soluções” que satisfazem os interesses dessas forças. Como sair por aí construindo sem muito critério.
Jornal GGN – Qual seria, então, a solução mais rápida para resolver o problema dos prédios ociosos nos centros das nossas cidades – em grande parte prédios particulares – que estão vazios e ociosos nos centros das nossas cidades?
O mais rápido seria nós desapropriarmos. O certo é o Estado dizer: “não está cumprindo a função social da propriedade? Desaproprio tudo e construo uma política de moradia via aluguel social de fôlego usando um novo parque habitacional público disponibilizado por esses imóveis”. Ah, mas o Estado alega que não tem dinheiro. A nona economia do mundo não tem dinheiro? Sessenta bilhões de reais, que é o orçamento da cidade de São Paulo, não tem dinheiro? Mas então, por que não se faz isso? A resposta está no amálgama dos empecilhos patrimonialistas. Alegam-se muitas coisas para não se desapropriar um imóvel ou um terreno: que Ministério Público faz um conjunto de exigências difíceis de cumprir, que para desapropriar é necessário usar outros mecanismo, que quem é devedor do IPTU entrou na Justiça, que o dono da propriedade é poderoso e outros tantos motivos. O que falta é força política para fazer isso, embora não faltem instrumentos de gestão para isso: o já citado PEUC (Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios, instrumento urbanístico que obriga a utilização dos imóveis ociosos sob pena de desapropriação com títulos da dívida pública), as Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social, que obrigam a construção de moradias sociais em determinadas áreas definidas pelo município), a desapropriação, o usucapião coletivo urbano e tudo mais. Mas, depois de quase 20 anos, quais municípios de fato aplicaram o Estatuto da Cidade de maneira integral e sistêmica para fazer frente à retenção ilegal de imóveis ociosos? Para obter terras bem localizadas? Praticamente nenhum. São Paulo foi uma boa exceção com seu Plano Diretor de 2014, junto com alguns outros municípios, mas, via de regra, quando isso ocorre, o enfrentamento dos privilégios urbanos das classes dominantes faz com que esses governos não sobrevivam à reeleição, tal a correlação de forças perversa da nossa política. Essa correlação de forças políticas se explicita na ponta, nos municípios, onde há o confronto efetivo com o dono da terra, aquele que mantém o terreno vazio, o imóvel vazio para o seu próprio lucro. Isso quando não ocorre, o que é muito comum no Brasil do patrimonialismo, do próprio coronel, dono de latifúndio, ser também o político, o Prefeito, que deveria combater o dono das terras subutilizadas, que é ele mesmo! Não há a menor chance de se ver, nesses casos, um Estado regulador que regule o próprio político que detém o poder da máquina pública. Por exemplo, por mais que o Minha Casa Minha Vida (MCMV) tenha tido aspectos ruins, o fato é que quando ele bateu na porta dos municípios, oferecendo 100 bilhões de Reais de subsídios a fundo perdido para fazer casas gratuitas para os muito pobres (foram construídas cerca de 1,7 milhão), estes não tinham feito a tarefa de usar os instrumentos previstos desde 2001 no Estatuto da Cidade para desapropriar terras, fazer estoque de lotes bem situados, designar locais para a moradia social. Sem isso, se viram reféns da lógica mercadológica das construtoras, que ofereceram a apetitosa (politicamente) solução de fazer muitas casas, porém muito longe. Os municípios alegam que o valor de mercado desses terrenos é muito alto. Isso é emblemático, pois, se o Estado não consegue obtê-los e tem que comprar é porque está à mercê e a reboque dessa lógica de mercado.
João Sette Witaker é professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade de Lyon/Jean Monnet – St.Etienne, França (2017), foi Secretário Municipal de Habitação de São Paulo entre 2015 e 2016 e é membro do BrCidades.