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Sob olhar dos profetas e protesto dos moradores, mineração avança na Serra do Pires

Mineração em uma das últimas áreas de campos ferruginosos de Congonhas tem impactado o abastecimento de água e transformado a paisagem da cidade histórica de Minas Gerais

Um dos pontos turísticos obrigatórios de quem visita a cidade de Congonhas, em Minas Gerais, é o Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, patrimônio histórico do Brasil. Do pátio da igreja, onde estão as doze estátuas dos profetas esculpidas em pedra sabão por Aleijadinho, vê-se de longe outro tesouro mineiro: a Serra dos Pires. Essa paisagem, entretanto, parte do cartão-postal de Congonhas, está sendo devorada pela mineração. A exploração, já em curso, tem impactado diretamente a vida e o abastecimento de água dos moradores, que pressionam para que as montanhas sejam transformadas em área protegida ou incluídas no tombamento paisagístico, que hoje protege apenas uma parte da serra.

O Conjunto de Serras Casa de Pedra foi tombado em 2007 pela Prefeitura de Congonhas, porém a delimitação, feita em 2012, concentrou-se na vertente das montanhas voltada para a área urbana, nos morros do Engenho e do Santo Antônio. Nesse desenho, a maior parte da Serra do Pires, apesar de sua relevância paisagística, hídrica e ambiental, acabou desprotegida.

Na corrida para impedir o avanço da mineração na serra, emergiram duas propostas. A primeira, modifica a lei que delimita o espaço territorial tombado da Casa de Pedra para que passe a incluir toda a Serra do Pires. 

projeto de lei n° 91/2023, do vereador Tião do Alvorada (PSD-MG) para ampliar o tombamento, tem como objetivo proteger as nascentes que estão na Serra do Pires, resguardar a beleza natural, o patrimônio espeleológico e arqueológico, assim como regulamentar a exploração mineral, a construção de obras e empreendimentos e a a supressão de vegetação.

“Essa alteração é imprescindível sob vários aspectos, mas resumidamente visa proteger as fontes de água que abastecem nossa cidade e cujas nascentes localizam-se na Serra do Pires, além de resguardar outros valores singulares da Serra, naturais, culturais, patrimoniais”, defende o vereador, em resposta enviada a ((o))eco.

De acordo com Tião, a tramitação do projeto na Câmara de Vereadores de Congonhas deve aguardar uma audiência pública antes da votação em sessão ordinária na casa.

Parte da paisagem da cidade histórica de Congonhas é tombada, mas a maior parte da Serra do Pires ficou de fora e agora “mancha” o cartão-postal com a exploração mineral em curso. Foto: Hugo Cordeiro

A segunda proposta, de tramitação mais morosa, reivindica a criação de uma área protegida, o Monumento Natural da Serra dos Pires, com aproximadamente 270 hectares de extensão distribuídos entre os municípios de Congonhas e um pequena parte de Ouro Preto, para englobar toda a Serra do Pires. Assinado pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT-MG), o Projeto de Lei nº 1.367/2023 foi apresentado no final de setembro na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

“No panorama geológico, a elevação do Pires configura-se como um dos limites da Cadeia da Moeda, gerando características únicas para a região, o que dá ensejo à criação de um Monumento Natural”, explica a deputada na justificativa da proposta pela unidade de proteção integral, “que não permite atividades degradantes, como a mineração”, completa.

Em entrevista com ((o))eco sobre como deve ser a tramitação do projeto, a deputada admite que o poder das mineradoras é muito forte dentro do parlamento mineiro, mas que atuará junto com seus aliados na Assembleia para aprovação tanto do PL que cria o Monumento Natural, quanto do projeto que reconhece a Serra do Pires como de relevante interesse cultural do Estado (PL n° 1.354/2023), também de autoria dela.

Ainda de acordo com a parlamentar, a criação da unidade de conservação e o tombamento são iniciativas que se complementam para salvaguarda e acautelamento da Serra do Pires.

“Essa ausência de proteção está causando expressivo impacto visual no Santuário do Bom Jesus de Matozinho, Patrimônio da Humanidade pela Unesco e tombado pelo Iphan, ferindo diretamente o tombamento paisagístico do conjunto protegido”, reforça em sua justificativa ao projeto.

Desenho mostra a área proposta para o Monumento Natural Serra do Pires, conforme consta no Projeto de Lei. Imagem: Reprodução

Impacto no abastecimento de água

Desde dezembro de 2019, a população de Congonhas tem testemunhado alterações significativas da Serra do Pires na porção voltada para o núcleo urbano do município. A destruição das cangas e dos campos rupestres ferruginosos da serra tem impactado diretamente a produção e a qualidade da água das nascentes que abastecem a cidade.

As cangas, que recobrem a serra, são um tipo de rocha ferruginosa que funciona como uma esponja, que permite as águas das chuvas fluírem diretamente para os lençóis freáticos.

Estas rochas são cobertas pela vegetação dos campos rupestres ferruginosos, um ecossistema raro e ameaçado, rico em espécies endêmicas que ocorrem apenas neste tipo de ambiente associado com o quadrilátero ferrífero e grandes depósitos de ferro.

Essa característica ferrosa é justamente o que atrai o interesse minerário, voltado para exploração do minério de ferro a partir das rochas de itabirito, compostas por quartzo e hematita (óxido de ferro). 

“A Serra do Pires é um pequeno pedaço que sobrou do limite sul do Quadrilátero Ferrífero, uma das áreas mais intensamente mineradas do Brasil”, ressalta o botânico João Lobo, morador de Congonhas e um dos porta-vozes do movimento coletivo em defesa da serra.

A orquídea Cattleya milleri, criticamente ameaçada e com ocorrência registrada apenas na Serra do Pires. Foto: João Lobo

Desde janeiro, o botânico está realizando o inventário florístico da serra, que deve ser concluído no final do ano. As espécies que registrou por lá reforçam o valor natural da serra, com presença de espécies únicas como a orquídea Cattleya milleri, endêmica e considerada Criticamente Em Perigo de extinção. “Hoje a Serra do Pires é provavelmente o último reduto da espécie no mundo”, alerta o pesquisador.

O morador de Congonhas destaca que a principal razão da serra ter sobrevivido até hoje – mesmo cercada por mineradoras – está no Bairro do Pires, localizado aos pés da serra. Com cerca de 2 mil moradores, o bairro depende das águas que nascem na serra para o seu abastecimento.  

“Nesse contexto, a mineração entra como um duplo problema: ao modificar ou remover as cangas, seja para acessar o minério ou realizar qualquer outro empreendimento, são destruídas as plantas que existem por ali e também o frágil sistema de percolação de água. Assim, proteger a Serra é importante não só para a conservação das águas na região, mas também para a sobrevivência de espécies únicas adaptadas a um dos ambientes mais raros e ameaçados do planeta”, defende João.

Desde o início do empreendimento minerário na serra, os moradores têm registrado problemas relacionados à escassez hídrica e poluição da água. Em março deste ano, as águas das casas se tornaram barrentas, carregadas com pó de minério. O problema foi causado pelo rompimento das adutora da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e da Ferro+, que sujou a mina que abastece o bairro.

Em resposta à destruição da serra foi criado o movimento coletivo “A Serra é Nossa”, que reúne moradores, ambientalistas e organizações como o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e o Instituto Histórico e Geográfico de Congonhas, além da Associação de Moradores do Bairro do Pires. Um abaixo-assinado virtual pela criação da área protegida também foi lançado.

“A preservação da serra é de grande importância pela fauna e flora, e também pelas nascentes que temos e abastecem a comunidade, com água pura e de qualidade”, compartilha a presidente da Associação de Moradores do Bairro do Pires, Isaura Lopes. Além disso, o bairro sofre com a poluição do ar por causa da poeira, causada pela ação das empresas, o que pode piorar ainda mais com o avanço da mineração.

Os impactos negativos também já estão sendo sentidos pelo bairro Barnabé, com a contaminação das águas da fonte que abastece o bairro – também com origem na Serra do Pires – com rejeitos e minérios de ferro.

A Ferro+ Mineração S/A, empresa responsável pela exploração na Serra do Pires, está instalada entre os municípios de Congonhas e Ouro Preto desde 2000, com foco nos processos de extração, beneficiamento e comercialização de minério de ferro. Através de lavras abertas, a empresa produz cerca de 7 milhões de toneladas de ferro anualmente, conforme dito no próprio site da companhia.

A reportagem de ((o))eco entrou em contato com a empresa através de e-mail em busca de esclarecimentos sobre o empreendimento atualmente em curso na Serra do Pires, os impactos da extração de minério de ferro e o posicionamento da Ferro+ sobre a mobilização para proteger a área. Até o momento, não houve retorno. O espaço segue aberto e caso a empresa envie uma resposta, a matéria será atualizada.

Mineração avança sobre a Serra do Pires. Foto: João Lobo

Além da extração do minério de ferro, o empreendimento, denominado PDE (pilha de disposição de estéril) do Guariba, irá criar uma área para disposição dos rejeitos da mineração, ou seja, tudo aquilo que não é ferro. 

“E não é um montinho pequeno de rejeitos, é coisa de 40 metros de altura. Eles estão licenciando nesse momento, elaborando os estudos de impacto ambiental [EIA/RIMA]. Já comprou-se os terrenos onde vão fazer”, denuncia João Lobo.

Em março, a empresa apresentou ao IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) um Relatório de Avaliação do Patrimônio Arqueológico. O levantamento indica a presença de seis sítios arqueológicos e uma ocorrência arqueológica e reitera o “elevado potencial arqueológico histórico local”.

A área de influência direta do empreendimento se estende pelas montanhas do oeste de Ouro Preto até a divisa com o município de Congonhas, onde cobre a crista da Serra do Pires. Por imagem de satélite, é possível ver a paisagem já devorada pela fome de minério de ferro.

“É uma briga contra 200 anos de dependência da mineração. As pessoas estão com a faca no pescoço, com medo de perder o emprego, mas com cada vez mais medo de perder o ar e a água, aí que o pessoal se levanta pra lutar”, reflete João.

FONTE OECO.ORG

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