Tive a grata oportunidade de experienciar o teatro aplicado à educação patrimonial que, em minhas pesquisas, registro como Teatro Patrimonial. Acredito empiricamente na capacidade educativa do teatro como mecanismo apropriado para envolver a população e modificar a percepção dos moradores diante da urbanidade, permeada por especificidades culturais e sociais que vão além da edificação tombada. Trata-se de um método em que a cidade se torna essencialmente uma engrenagem educadora e que visa valorizar o patrimônio cultural na amplitude conceitual que o termo exige na contemporaneidade. Nesse sentido, o Teatro Patrimonial é uma proposta interdisciplinar desenvolvida no ambiente informal de ensino com a perspectiva de intervir na realidade social por meio da teatralização dos monumentos históricos e das práticas cotidianas de seus interlocutores. Na atualidade, o conceito de Teatro Patrimonial, que foi aplicado como método em municípios da região, tornou-se referência para pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e outras instituições de ensino superior.
A primeira experiência que tive com práticas teatrais centradas na preservação do patrimônio cultural ocorreu na cidade de Ouro Branco a partir da necessidade de estimular o envolvimento comunitário em ações preservacionistas. Em 1998, quando foram iniciadas as mobilizações para restaurar a Casa de Tiradentes, conhecida também como Fazenda das Carreiras, ficou constatado que era necessário o envolvimento comunitário para garantir não apenas a restauração do monumento, mas também a utilização sustentável da edificação, patrimônio cultural de Minas Gerais. O planejamento urbano de Ouro Branco contribuiu para a segmentação socioeconômica e gerou uma segregação socioespacial que muitos podem considerar natural, mas não é.
Chega a ser constrangedor constatar como a maioria das pessoas está mais predisposta a perceber a realidade global de astros hollywoodianos do que se engajar, ou meramente se interessar, pelos problemas de seu bairro, de sua rua. A preservação do patrimônio cultural necessita do envolvimento e da participação dos cidadãos. No entanto, eis que surgem questões emblemáticas e de respostas em dissonância com o contexto histórico de Ouro Branco. Como reunir uma população tão heterogênea e desmembrada geograficamente por aspectos de ordem econômica e social? Como estabelecer uma gestão cultural centrada na participação comunitária? Essas indagações foram e continuam sendo essenciais para garantir o desenvolvimento de espetáculos com temática preservacionista e interdisciplinar.
Durante o processo de restauro da Casa de Tiradentes, montagens e releituras dramáticas da obra Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, ganharam as ruas e as praças da urbe. A obra poética, que narra fragmentos históricos da Conjuração Mineira, foi apresentada na maioria dos bairros e nos distritos da zona rural, mostrando a relevância cultural de Ouro Branco no contexto histórico nacional. Com o êxito da experimentação teatral centrada em ações preservacionistas, foi produzido um espetáculo de rua que incluiu os principais grupos artísticos da cultura popular. Com o título criado para defender a ideia de inclusão da cidade no contexto do Ciclo do Ouro, o espetáculo Ouro Branco no Circuito foi estruturado como um cortejo aos principais monumentos do centro histórico, como meio de desenterrar as memórias subterrâneas da população. Dessa forma, consolidou-se a prática do Teatro Patrimonial, alicerçado na apropriação sistemática de espaços que passam a representar novas alternâncias de significados simbólicos e de percepções que estimulam o sentimento de pertença na comunidade.
Não é de hoje que o teatro é considerado um instrumento didático para tratar de problemas sociais que colocam em pauta questões como preservação do meio ambiente, participação social e o protagonismo de grupos historicamente vulnerabilizados. A iniciativa de incluir a população para interpretar a história de uma cidade gera impactos diretos na preservação da identidade cultural. Com a inserção de atores da comunidade, interpretando e refletindo sobre contextos locais, abre-se um campo amplo de possibilidades de apropriação e de utilização dos espaços públicos. Uma população com sua identidade cultural preservada, com a sensação de pertencer ao lugar, assegura novas possibilidades de participação na realidade social e nas decisões políticas. É necessário recorrermos ao Teatro Patrimonial como mecanismo capaz de ampliar a percepção da população diante dos problemas humanos e urbanos. Um teatro que amplia a função social da preservação do patrimônio histórico e que evidencia nossa identidade cultural a partir de uma perspectiva pedagógica, participativa e, portanto, cidadã.
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Éverlan Stutz é jornalista, graduado em Artes Cênicas pela UFOP, especialista em Gestão do Patrimônio Cultural pela PUC Minas, mestrando no Programa de Pós-graduação em Turismo e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Ouro Preto.