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TRAGÉDIA CLIMÁTICA E CALAMIDADE NO SUL DO BRASIL: a natureza retoma o que é seu

José Luiz Rigo Rodrigues revisita o processo de ocupação urbana da região metropolitana de Porto Alegre para fazer sugestões de medidas a serem tomadas diante da calamidade vivida no estado

*Foto: Flávio Dutra/JU

No momento em que o povo do Rio Grande do Sul enfrenta mais uma tragédia climática, provavelmente intensificada pelas alterações do clima em razão das atividades humanas, caracterizada pela elevação das médias das temperaturas, que modificaram as condições hidrológicas da região metropolitana de Porto Alegre, ficamos na obrigação de tecer algumas considerações.

A história através dos séculos geológicos da bacia hidrográfica da região metropolitana está magistralmente registrada no clássico livro Atlas Ambiental de Porto Alegre, publicado em 1998 sob a coordenação do colega Rualdo Menegat. A publicação hoje se encontra disponível na internet. 

Nos últimos cem anos, isto mesmo, um século, as políticas públicas da região metropolitana de Porto Alegre se caracterizaram pela apropriação das regiões ribeirinhas e das áreas de várzea que circundam a bacia hidrográfica do lago Guaíba, caracterizadas por uma ocupação urbana sem planejamento e um crescimento das cidades vizinhas contemplando o loteamento de áreas de risco, caracterizadas como de expansão dos rios em momentos de aumentos da vazão hídrica.

A atuação do homem no planejamento e na realização dessas ações foi nefasta para a realidade que hoje a população da grande Porto Alegre enfrenta. Os rios que desaguam no lago Guaíba, assoreados por um acúmulo crescente de efluentes cloacais e lixo urbano, que comprometeram a capacidade do meio ambiente em dar vazão adequada ao volume de água nos momentos críticos de pluviometria, reduziram significativamente a resposta da natureza à agressão ao meio ambiente.

A enchente contra a qual a população do Rio Grande do Sul hoje luta é muito bem caracterizada no livro publicado em 2001 Os rios da cidade, redigido pela equipe da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (METROPLAN) e com a participação de colaboradores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, na pessoa do professor Carlos Eduardo Tucci, que redigiu o prefácio.

O IPH é uma unidade de ensino da UFRGS fundada em 1953 como órgão prestador de serviços e consultorias à Universidade. As fotografias que aparecem abaixo no texto foram publicadas no livro citado acima. No IPH, é oferecido o curso técnico em hidrologia instalado em 1969, sendo pioneiro na América Latina, os cursos de graduação em Engenharia Ambiental (parceria com a Escola de Engenharia) e em Engenharia Hídrica, este último desde 2012, além de serem ministradas cadeiras para cursos de graduação e pós-graduação para as áreas de Engenharias, Agronomia, Arquitetura e Geologia. Ao longo destas sete décadas o IPH formou extensa massa crítica na área e realizou estudos em diferentes cenários da hidrologia, inclusive alertando há mais de cinco décadas sobre as alterações do meio ambiente causadas pelo homem criadoras das condições para a ocorrência da tragédia que ora se abate sobre o Rio Grande do Sul.  

Os aterros de grandes áreas da região, que iniciaram no hoje denominado Centro Histórico de Porto Alegre e que rapidamente se estenderam ao sul e ao norte da cidade, apropriando-se das regiões ribeirinhas, culminaram por garantir a criação das condições ambientais para a ocorrência periódica de cataclismas climáticos, que têm por consequência prejuízo da população socioeconômica carente da região. A rua mais famosa de Porto Alegre, a Rua dos Andradas é também conhecida como Rua da Praia, pois, na altura do que hoje é a Praça da Alfândega, no século XIX era uma praia ribeirinha porto-alegrense. Esta atitude dos doutos líderes da época, entre os quais José Montaury, Otávio Rocha e Alberto Bins, no período de 1897 a 1937 foram os responsáveis pelas políticas públicas da municipalidade que levaram ao colapso atual da capital riograndense. 

Às decisões errôneas de diversas administrações municipais e estaduais, somou-se a maior na década dos anos sessenta do século passado: com a colaboração do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) – criado em 1936 e extinto em 1990 –, o Governo Estadual realizou a drenagem do Banhado Grande do rio Gravataí, o que reduziu, em dez anos, uma área que era de 450 km2 de esponja hídrica e passou para 138 km2; em 1979, a área não tinha mais que 50 km2, quando um parecer da segurança pública do estado sustou a drenagem do banhado.

Observem que a “esponja hídrica” da bacia do rio Gravataí teve uma redução de nove vezes em sua área em um período menor que vinte anos, seguida pela ocupação humana desenfreada da área, outrora banhados, de sustentação do equilíbrio ecológico, com influência direta sobre os municípios da região, principalmente Gravataí e Cachoeirinha.

A mesma estratégia de drenagem e aterros foi utilizada na zona sul de Porto Alegre, nas áreas hoje ocupadas pelo hipódromo e bairro do Cristal (fotos 1 e 2).

Réptil castanho em cima de areiaDescrição gerada automaticamente com confiança média
Foto 1: Área do atual Hipódromo do Cristal em 1951. (Fonte: livro Os rios da cidade, redigido pela equipe da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional)
Vista aérea de uma cidade
Foto 2: Aterro do hoje hipódromo e bairro do Cristal em 1955. (Fonte: livro Os rios da cidade, redigido pela equipe da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional)

A ausência de políticas públicas ambientalmente sustentáveis somou-se ao crescente aumento da população na área metropolitana de Porto Alegre, com o rápido e não planejado crescimento das áreas industriais, que proporcionaram o desenvolvimento dos municípios ao norte da capital, como Canoas, Esteio e Sapucaia do Sul. Estes aprovaram diferentes loteamentos em áreas de risco, que foram responsáveis pelas sucessivas enchentes e prejuízos à população carente da grande Porto Alegre.

A foto 3 abaixo, cenário de uma enchente em 1963, revela a inadequação da área do bairro Mathias Velho em Canoas para uso urbano. Naquela época, praticamente não havia ocupação humana daquela área de risco. Hoje, o loteamento e a alta densidade populacional são os responsáveis pelo flagelo de cinquenta mil famílias canoenses.

O mesmo fenômeno pode ser observado em toda a vizinhança de Porto Alegre, como o bairro Santa Rita em Guaíba, loteamento em área de risco ambiental, hoje responsável por quarenta e cinco mil desabrigados.  

Foto em preto e branco de rua com neve
Foto 3: Bairro Mathias Velho em Canoas, durante a enchente de 1963. (Fonte: livro Os rios da cidade, redigido pela equipe da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional)

Quais foram as empresas que lucraram com o loteamento dessas áreas totalmente inadequadas ao uso urbano? Quais foram os responsáveis pelas liberações de autorizações para a criação de bairros com alta densidade populacional em áreas de risco? Quais os meios que atualmente dispõem os cidadãos que tudo perderam de identificar os responsáveis para serem ressarcidos de maneira justa, que lhes permita um recomeço em nova realidade socioeconômica?

O jovem município de Eldorado do Sul é mais um típico exemplo de emprego das áreas de risco para o crescimento urbano, pois loteado e ocupado em área inundável, hoje se encontra submerso, gerando prejuízos incalculáveis à sua população. Quem ganhou com este inadequado planejamento do crescimento urbano? Não seria necessário identificar responsáveis e cobrar devidamente os prejuízos à população?

O desenvolvimento urbano das áreas de atividade econômica na região metropolitana de Porto Alegre e ao longo dos rios Jacuí, Taquari, Caí, Gravataí e Sinos, com o passar do tempo alcançando as bacias hidrográficas dos seus afluentes, atingem uma boa parte do território riograndense que hoje é assolado com esta tragédia climática. A natureza retoma o que lhe pertence, e a história revela que são infrutíferas as ações humanas para impedir a resposta do meio ambiente aos crimes cometidos pelo que denominamos civilização moderna.

Quais seriam as estratégias e os futuros planos para a alocação das populações de flagelados que a calamidade climática produziu no Rio Grande do Sul? Na minha opinião as seguintes ações são indispensáveis:

  1. Saneamento básico disponível aos 100% da população;
  2. Políticas públicas e ações ambientais de proteção às bacias hidrográficas;
  3. Realocação das populações atingidas pela tragédia em áreas sem risco ambiental, distantes das atuais;
  4. Criação de uma infraestrutura urbana com casas “ditas populares” construídas com qualidade, levando em consideração a relação custo/benefício, e que respeitem os preceitos de área útil para famílias de quatro membros. Os terrenos, devidamente saneados, deveriam ter pelo menos 200 m2 e as residências com área útil de 180 m2, contendo três quartos e dois banheiros. Isto significa proporcionar identidade aos cidadãos, fixando-os à terra e criando o alicerce para o atendimento das suas necessidades básicas. 

O Brasil, como também hoje é exemplo o mundo, se caracteriza pela concentração da riqueza, onde se pode identificar indivíduos com mais capital do que países. O liberalismo econômico associado à social-democracia, do qual sou adepto, deve preservar a oportunidade igualitária de acesso à educação como alicerce fundamental e, lamentavelmente, em um país onde uma parte significativa da população é analfabeta funcional, não se pode esperar alcançar níveis de desenvolvimento socioeconômico que permitam a consolidação e o crescimento sustentável da classe média.

Vamos à luta, saúde, força e resiliência aos cidadãos riograndenses!

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