A comparação entre os dois casos revela que a participação comunitária e a transparência são essenciais para a governança diante de desastres tecnológicos
Em novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), liberou cerca de 60 milhões m3 de rejeitos de mineração, um volume de rejeitos que encheria 30 vezes o estádio do Mineirão[1] em Belo Horizonte. A ruptura da barragem resultou em dezenove mortes, devastou comunidades, poluiu rios e causou danos ambientais e socioeconômicos ao longo do curso do Rio Doce até o litoral do Espírito Santo. Quatro anos depois, em janeiro de 2019, o colapso da barragem B1 em Brumadinho (MG) despejou aproximadamente 10 milhões m3 de rejeitos (cinco vezes o volume do Mineirão), resultou em 270 mortes e deixou um rastro de destruição socioambiental ao longo do Rio Paraopeba. Ambos os desastres ocorreram na região conhecida como Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais, uma das maiores provinciais minerais produtoras de minério de ferro do mundo.

Crédito: Antônio Cruz/Agência Brasil
As escalas dos desastres são diferentes, mas ambos são similares em termos de localização e atividade econômica, danos ambientais e socioeconômicos. Contudo, as respostas institucionais e os resultados da ação imediata pós-desastres foram diferentes, como revela o recente estudo[2] que desenvolvemos no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG. A pesquisa analisou o impacto da governança institucional na recuperação econômica de Mariana e Brumadinho após os desastres por meio de fluxos financeiros locais, como operações de crédito e depósitos à vista e de poupança.
Em Mariana, a governança pós-desastre foi marcada por conflitos institucionais e pela falta de participação efetiva das comunidades afetadas. Processo que resultou no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado em março de 2016, entre o governo federal e governos de Minas Gerais e do Espírito Santo com as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton. Os diversos programas de reparação/compensação seriam executados por uma fundação privada, a Fundação Renova. Para suporte financeiro às ações da Fundação, foram alocados inicialmente R$ 31,2 bilhões.[3] Em 2018 ocorreu ajuste do modelo por meio do TAC-Governança, no qual representantes das comunidades e dos Ministérios Público Estadual e Federal ganharam maior influência sobre a gestão da reparação. A ausência de representação direta das vítimas no processo decisório, a multiplicidade de ações e a lentidão na adoção de medidas de apoio à população resultaram em reparações que foram criticadas e contestadas por prefeitos e pelas populações atingidas. Apesar de gastos de R$ 11,4 bilhões[4] entre 2016 e 2021, a percepção de ineficiência, ineficácia e a falta de transparência minaram a confiança no processo.

Crédito: Ibama from Brasil – Brumadinho, Minas Gerais
Já em Brumadinho, a governança adotada foi mais ágil e participativa desde o início. Com a supervisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o modelo adotado priorizou a arbitragem judicial e a participação ativa dos Ministérios Públicos Federal e do Estado de Minas, além de assessorias da população atingida. Acordos emergenciais garantiram que auxílios financeiros chegassem rapidamente aos atingidos, reduzindo a insegurança resultante da paralisação de atividades econômicas. Além disso, peritos foram mobilizados para avaliar os impactos e apoiar a formatação de programas assistenciais. Esse arranjo institucional mitigou danos econômicos imediatos e garantiu maior legitimidade e eficácia nas ações de reparação. Por fim, com a mediação do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), em fevereiro de 2021 foi firmado o “Acordo Global” para o caso Brumadinho, com valor total de R$ 42,9 bilhões[5] para reparação e compensação dos danos.
A comparação entre os dois casos revela que a participação comunitária e a transparência são essenciais para a governança diante de desastres tecnológicos. Em Mariana, a exclusão das comunidades afetadas no início do processo resultou em atrasos e ineficiências que poderiam ter sido evitados. Nosso estudo analisa o impacto do desastre nas operações de crédito per capita da cidade entre novembro de 2015 e setembro de 2022. Sem o colapso da barragem, o valor médio esperado seria de US$ 1049,27, mas o valor observado foi de US$ 1100,85. No financiamento rural e agroindustrial, o valor observado foi de US$ 60,39, enquanto o esperado seria US$ 67,67. No financiamento imobiliário, o valor esperado era US$ 195,99, mas o observado foi US$ 161,89, representando uma queda média de 17,40%. Já no caso de Brumadinho, após o desastre, os saldos das operações de crédito (excluindo financiamento rural, agroindustrial e imobiliário) atingiram uma média de US$ 791,22, enquanto o valor esperado sem o evento seria de US$ 320,98. Isso representa um aumento de 147% nessas operações, indicando um impacto altamente significativo. No financiamento rural, a média observada foi de US$ 41,84, abaixo dos US$ 50,11 esperados, com uma diferença de US$ 8,26 per capita. Por fim, no financiamento imobiliário, a média observada foi de US$ 276,30, enquanto o valor esperado era de US$ 352,25, indicando uma perda de US$ 75,95 per capita.
As governanças entre os dois desastres se influenciaram. O desastre de Brumadinho expôs as fragilidades institucionais e conflitos que comprometeram a governança e atrasaram a recuperação econômica no caso de Mariana, aumentando a pressão pública e midiática pela adoção de governança mais eficaz. Brumadinho serviu como catalisador adicional para renegociações do acordo em Mariana, evidenciando a necessidade de maior controle e representatividade no processo de recuperação, servindo como contraponto à governança pós-desastre do primeiro caso. Também é importante destacar a atuação de movimentos sociais e de ONGs que foram cruciais para organizar as demandas das comunidades.
A governança em Brumadinho adicionou pressão política na renegociação dos acordos em Mariana. Ainda em 2019, ano do desastre em Brumadinho, o orçamento destinado ao ressarcimento e indenização das vítimas de Mariana foi significativamente ampliado, passando de R$ 1,6 bilhão em 2018 para R$ 4,9 bilhões em 2019.[6] Esse aumento reflete maior atenção às necessidades imediatas das comunidades e demonstra como a aprendizagem institucional e a adaptação são fundamentais para melhorar a resposta a desastres tecnológicos e naturais.
Após cerca de dez anos do desastre em Mariana, foi assinado o Acordo de Repactuação da Bacia do Rio Doce, com valor total estipulado em R$ 170 bilhões, sendo R$ 38 bilhões já alocados pela Fundação Renova (que será extinta), R$ 32 bilhões destinados à conclusão de indenizações, reassentamos e recuperação ambiental, sob responsabilidade da Samarco, e R$ 100 bilhões repassados pela Samarco aos governos federal, estadual de Minas Gerais e Espírito Santo e municípios da Bacia do Rio Doce. Importante destacar que os R$ 132 bilhões serão distribuídos ao longo dos próximos vinte anos e parte deles não necessariamente serão alocados na região atingida. Contudo, dos 49 municípios considerados atingidos, somente 26 optaram por não aderir aos termos do novo acordo por entenderem que possuem maior potencial de retorno a partir de uma eventual condenação da BHP Billiton em ação judicial que corre na justiça britânica.
No caso de Brumadinho, também existem incertezas ou pontos de atenção. O primeiro deles, de natureza institucional e prática, diz respeito à efetiva reparação do território atingido, mediante a coerência entre os programas estipulados no acordo de reparação e o impacto real. É preciso que a execução desses programas seja embasada em todo o levantamento de perícia realizado até aqui e lastreado em parâmetros técnico-científicos. O segundo, trata-se de uma deficiência de preparação do território atingido, sobretudo Brumadinho, com relação aos impactos econômicos relacionados ao fim do pagamento do programa de transferência de renda.
O estudo reforça a necessidade de estruturas de governança que priorizem a agilidade, a transparência e a participação comunitária. Sem uma governança institucionalizada e democrática, os impactos desses eventos podem se desdobrar em conflitos adicionais e se prolongar por décadas, agravando ainda mais os danos sobre as populações, em particular aquelas mais vulneráreis do ponto de vista socioeconômico e ambiental. Os desastres de Mariana e Brumadinho devem servir como um alerta e referências para a construção de um futuro mais seguro e sustentável.
Para o setor empresarial, as lições são claras: a responsabilidade social e ambiental não pode ser relegada a segundo plano. A Vale e a Samarco enfrentaram não apenas custos financeiros significativos, mas também danos irreparáveis à sua reputação. A transparência, a prestação de contas e o engajamento com as comunidades afetadas são essenciais para mitigar os impactos de desastres e reconstruir a confiança.
Para o setor público, o estudo reforça a necessidade de estruturas de governança que priorizem a agilidade com participação comunitária com suporte de assessorias. A criação de mecanismos que garantam a representação de vítimas e a supervisão independente são peças importantes na governança pós-desastre.
Para o Poder Judiciário, as lições também são evidentes. A atuação da Justiça em Brumadinho, com a rápida arbitragem, mostrou-se crucial para garantir respostas mais eficazes em comparação com o caso de Mariana. Em situações dramáticas e emergenciais, o Poder Judiciário deve estar preparado para atuar de forma ágil, garantindo atendimento rápido; para tanto, a organização institucional do caso Brumadinho foi relevante. Além disso, a supervisão judicial contínua e a garantia de transparência nos processos de reparação foram essenciais para construir confiança e legitimidade.
Por fim, um aspecto adicional e que merece atenção: os acordos de Mariana e de Brumadinho ignoraram em grande medida a dependência econômica da mineração. Os acordos focaram na mitigação, reparação e compensação socioeconomia e ambiental. Faltaram discussões e propostas sobre geração de renda e emprego, diversificação produtiva e desenvolvimento sustentável. É possível discutir compensações econômicas com a perspectiva do desenvolvimento econômico, porém, essa discussão não aconteceu. Talvez o foco nas ações de curto prazo afastou a população atingida e as instituições públicas de temas e questões mais complexas, tais como: o que fazer depois da mineração e o que fazer além da mineração? Certamente temas importantes para regiões que dependem de um recurso natural não renovável.
Ricardo Ruiz, Rafael Ribeiro, Weslley Cantelmo e Aleff Lopes são membros do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG.
[1] O Estádio do Mineirão em Belo Horizonte tem volume interno aproximado de 2 milhões de m3.
[2] Ruiz, R.M.; Ribeiro, R.S.M; Cantelmo, W.; and Lopes, A.F. (2025) ‘How institutional governance shaped the economic recovery after mining disasters in Brazil: The cases of Mariana and Brumadinho’, Cities, Volume 161, DOI: https://doi.org/10.1016/j.cities.2025.105906.
[3] R$ 20,2 bilhões de março de 2016 a preços de dezembro de 2024 (correção via IPCA).
[4] Valores a preços de dezembro de 2024 (correção via IPCA).
[5] R$ 33,7 bilhões de fevereiro de 2021 a preços de dezembro de 2024 (correção via IPCA).
[6] Valores a preços de dezembro de 2024 (correção via IPCA).
FONTE: DIPLOMATIQUE