Sócia de hidrelétrica no rio Doce e da mineradora Samarco, Vale se vê em guerra interna por danos causados pela lama
BRASÍLIA – A lista de milhares de vítimas que, ainda hoje, cobram indenizações da Vale e da BHP pela tragédia que causaram em Mariana (MG) passou a incluir o nome nada trivial de uma empresa indignada com o comportamento dos donos da barragem de rejeito que rompeu em Minas Gerais em 2015: a própria Vale.
O que faz a Vale sentir hoje o peso dos 56 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro e sílica que ela própria despejou sobre a região e o curso do rio Doce, matando 19 pessoas, é reflexo direto dos negócios que a companhia possui na região.
Reconhecida como uma das maiores mineradoras do mundo, a Vale é dona de metade da Samarco – a empresa que controlava a barragem que rompeu em Mariana – em sociedade com a anglo-australiana BHP Billiton. Paralelamente, a Vale também é sócia majoritária da usina hidrelétrica Risoleta Neves, erguida no rio Doce em 2004 e também atingida pela lama. Por trás do nome fantasia de “Consórcio Candonga” está a Vale, que controla 77,5% da hidrelétrica, em sociedade com a Cemig, que detém 22,5% do negócio.
Passados mais de oito anos desde aquele fatídico 5 de novembro de 2015 – quando se deu o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, a Vale se vê, hoje, dragada por um processo judicial que, na prática, ela mesma moveu, uma vez que está dos dois lados do balcão, como causadora e vítima da tragédia. E, na Justiça, a batalha é pesada.
A Agência Pública teve acesso exclusivo a detalhes do processo judicial e das acusações que o Consórcio Candonga (Vale e Cemig) impõe à Samarco (Vale e BHP), uma disputa que envolve desde a cobrança de multas milionárias até medidas impositivas contra os donos da barragem de rejeitos.
POR QUE ISSO IMPORTA?
Rompimento da barragem do Fundão, em 2015, despejou 56 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro na região, matou 19 pessoas e atingiu o rio Doce, chegando até o oceano Atlântico
No meio do rio, há uma usina hidrelétrica que também foi atingida e teve suas atividades paralisadas. Tanto a usina quanto a mineradora têm como sócia a Vale, que agora briga consigo mesma
Nos processos judicial e administrativo – pilhas de papéis que correm na Justiça Federal de Minas Gerais e na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) –, os donos da hidrelétrica expõem sua indignação contra a Samarco e acusam a empresa de ser omissa.
“A verdadeira causadora do dano se furta a cumprir com suas obrigações”, dispara a dona da hidrelétrica contra a Samarco, por causa do descumprimento de vários compromissos. “Por diversas vezes, a Samarco demonstrou seu descontentamento com a obrigação que assumiu”, continua.
Os desentendimentos remontam a novembro de 2015, quando a hidrelétrica Risoleta Neves, com suas três turbinas e potência de 140 megawatts, teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama que varreu 40 municípios entre Minas e o Espírito Santo, até chegar ao oceano Atlântico. A energia gerada pela usina é capaz de abastecer cerca de 180 mil residências.
Local atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco
Em março de 2016 – há exatamente oito anos –, a Samarco assinou um Termo de Transação e de Ajuste de Conduta (TTAC), assumindo uma série de compromissos, reparações e indenizações às vítimas do desastre. Entre os contemplados estava a usina Risoleta Neves, com a promessa de ver retirado cada metro cúbico de lama que entupia seu reservatório. Nada disso, porém, foi feito e, com a usina paralisada, o plano de recuperação passou a ser alvo de disputa na Justiça.
Em dezembro de 2022, uma decisão judicial determinou que o Consórcio Candonga tinha que religar a usina, visto que continuava recebendo pagamento mensal pela geração de energia que não existia – uma conta salgada que foi bancada por anos pelos consumidores, por meio da conta de luz. A determinação foi atendida e, em maio de 2023, a hidrelétrica voltou a funcionar. Ocorre que a retirada de lama pela Samarco simplesmente não aconteceu como previsto. E a mineradora lavou as mãos.
“Desde a data do rompimento da barragem de Fundão [5 de novembro de 2015], ela [Samarco] só conseguiu retirar cerca de 5% do montante total de rejeitos do reservatório. Ou seja, no reservatório da usina permanecem mais de 9,2 milhões de m³ de rejeitos”, acusa o consórcio da Vale e da Cemig.
Sem meias palavras, as sócias afirmam que há “absoluta falta de compromisso da Samarco com o efetivo retorno operacional e com a continuidade da operação, uma vez que estão fechando os olhos para os impactos que a presença de rejeitos no reservatório causa”.
Em junho de 2023, um relatório técnico elaborado logo após a retomada das operações comprovou que a lama já estava causando estragos nos equipamentos da hidrelétrica, com efeito abrasivo acelerado nos metais e redução da capacidade de carga da usina.
Tentativas para fazer com que a Vale e a BHP cumprissem seus deveres não faltaram. O Consórcio Candonga menciona pelo menos 19 ocasiões, entre junho de 2020 e setembro de 2023 – todas registradas em documentos –, em que buscou formas de fazer a Samarco cumprir a obrigação de retirar a lama. Não teve jeito.
“A Samarco se comprometeu a retirar mais de 9,6 milhões de metros cúbicos de rejeito do reservatório da usina. Até o momento, tirou aproximadamente 500 mil metros cúbicos”, declarou o Consórcio Candonga, em documento de novembro do ano passado. “É patente que o concessionário não mediu esforços para que as condições originais do empreendimento fossem retomadas. Não obstante, em vista da desídia [comportamento negligente] da Samarco, tem-se que, até o momento, isto não foi possível.”
A concessionária formada por Vale e Cemig acentuou as queixas contra a mineradora, que se limitou a retirar o mínimo necessário de sua lama. “A Samarco, enquanto responsável pelo desastre, vem se furtando ao cumprimento de suas obrigações, sustentando a tese de que, com o retorno da operação comercial da usina, a sua obrigação já restaria cumprida. Nada mais errático”, afirma o Consórcio Candonga.
Briga na Justiça
A lama dos sócios foi parar na Justiça e a confusão se intensificou ainda mais. Enquanto donas da barragem de rejeitos, a Vale e a BHP não apenas deixaram de fazer a retirada integral dos rejeitos como buscaram os tribunais para tentar escapar dessa obrigação que elas próprias haviam assumido de fazer a dragagem e desassoreamento integral dos 9,6 milhões de metros cúbicos de lama parados no reservatório da usina.
Logo depois de ser emitida a licença ambiental que autorizava a remoção, a Samarco informou no âmbito judicial que a Fundação Renova, organização criada para reparar os danos da tragédia, apresentou um recurso administrativo para rever a exigência. A partir daquele momento, os planos da Vale e BHP passaram a definir que a remoção de rejeitos só seria feita na “hipótese de ser futuramente constatada, sob o aspecto técnico, a necessidade de adoção de tal medida”.
A postura revoltou os donos da hidrelétrica. “A Samarco tem tratado a continuidade da retirada de rejeitos do reservatório da usina como se fosse uma medida [obrigação] ainda duvidosa, hipotética, não obrigatória, restrita à manutenção do status atual do reservatório”, acusou o Candonga. “Com base unicamente na retomada da operação em um cenário precário e experimental, [a Samarco] busca induzir, de forma açodada, o entendimento de que cumpriu integralmente com sua obrigação.”
Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Ato contínuo, o consórcio da Vale e Cemig acionou a 4ª Vara Federal de Belo Horizonte pela “recalcitrante postura da Samarco”. Na Justiça, o Candonga cobrou providências para a retirada integral dos resíduos e pediu, ainda, que fosse arbitrada uma multa diária de R$ 1 milhão contra a Samarco até que atendesse o cumprimento integral da decisão judicial.
O caso segue em aberto. Em 2022, os donos da hidrelétrica já perderam um primeiro round, quando a Aneel e a Justiça decidiram que o Consórcio Candonga é o responsável imediato pela operação da usina e que deveria não só retomar as operações da hidrelétrica, como também buscar seus direitos diretamente com a Samarco. É Vale contra a Vale.
A hidrelétrica não aceita o argumento e chega a comparar a tragédia de Mariana com a pandemia de covid-19, sob a justificativa de que foi vítima de algo de que não tinha controle. Logo, não poderia ter responsabilidade por isso.
“O desastre de Mariana, sob o aspecto do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, deve ser tratado sob a ótica da teoria da imprevisão, tal como se operou com a pandemia provocada pelo novo coronavírus”, afirmou, no processo que tramita na Aneel. “A própria pandemia do covid-19 foi considerada pela Aneel como causa hábil para isentar o concessionário de penalidades por descumprimento contratual.”
A bronca sobrou também para o poder público. “Quem autorizou a Samarco a construir a barragem de Fundão e nela depositar rejeitos foi o poder público, que também sempre foi o responsável pela fiscalização da segurança do barramento”, argumentou o consórcio. “Não há como se imputar a responsabilidade à concessionária, sendo que o próprio poder público autorizou a construção da barragem.”
A Pública questionou cada um dos envolvidos na celeuma jurídica a respeito das informações contidas nesta reportagem. O Consórcio Candonga limitou-se a declarar que “não se manifesta a respeito de assuntos sobre os quais haja ações judiciais em andamento”.
A Aneel não se posicionou até o fechamento desta reportagem. A Samarco se esquivou de detalhar as razões de não cumprir o acordo de retirada integral da lama. Por meio de nota, informou que “está totalmente comprometida com a retomada das operações e com a segurança da usina”.
Da mesma forma como fez na Justiça, disse que tem cumprido sua parte no acordo. “A empresa retirou rejeitos por meio de dragagem para o retorno da usina, realizou reforços na estrutura do barramento, bem como executou as manutenções necessárias para a sua retomada, realizada no primeiro semestre de 2023.”
A Vale, sócia da hidrelétrica e da mineradora, não quis se manifestar. “A Vale não comenta ações judiciais em curso”, declarou.
A participação majoritária da Vale no Consórcio Candonga deve-se ao arranjo societário da empresa. A mineradora é dona de 50% da concessionária, enquanto a empresa Aliança Energia detém os demais 50%. Ocorre que a Vale também detém 55% da Aliança, em parceria com a Cemig, dona de 45%. Na prática, portanto, a fatia real da Vale dentro da hidrelétrica Risoleta Neves chega a 77,5%, com os demais 22,5% da Cemig. No ano passado, houve movimentação de mercado da Vale para comprar a fatia da companhia mineira na Aliança Energia.
Se o cronograma original de retirada da lama for levado adiante, tudo indica que a guerra judicial ainda está longe do fim. A Samarco, conforme plano oficial, admitiu a obrigação de retirada integral dos rejeitos em um prazo de 27 anos. Hoje, o cenário é de incógnita.
Os alertas foram feitos. “Há também o iminente risco da necessidade de interrupção da operação da usina, em vista do acúmulo de rejeitos atingir a tomada d’água da usina”, reclamou a hidrelétrica à agência reguladora. “É viável a continuidade da operação, desde que a Samarco cumpra efetivamente com sua obrigação de remoção dos rejeitos do reservatório da usina.”
Dentro do Consórcio Candonga, a Vale renova sua indignação e aguarda os próximos passos da Justiça. Dentro da Samarco, a Vale silencia.
Edição: Giovana Girardi
FONTE: A PUBLICA