A APA Chapada do Lagoão está localizada em Araçuaí; apesar de recomendação contrária do MPMG, projeto de lei foi apresentado pelo município na Câmara
No coração do chamado “Vale do Lítio” — maior reserva brasileira do metal, que é essencial para as baterias de veículos elétricos —, a cidade de Araçuaí, no Jequitinhonha, pode ir na contramão da sustentabilidade propagandeada pelas fabricantes destes veículos e reduzir em 23% o tamanho da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão. O projeto de lei polêmico, apresentado pelo prefeito do município de 34 mil habitantes, foi alvo de uma Audiência Pública realizada nesta quarta-feira (26 de fevereiro) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Com pouco mais de 24 mil hectares de área em uma região de transição dos biomas Cerrado e Caatinga, a APA concentra uma grande biodiversidade, além de 139 nascentes catalogadas, sendo considerada a “caixa d’água” do município mineiro, alimentando os rios Jequitinhonha e Araçuaí.
“Querem avançar com a exploração de lítio na região em áreas protegidas. Por que reduzir a APA Chapada do Lagoão, que é conhecida como a caixa d’água de Araçuaí? A destruição daquele território tem impactos irreversíveis, justamente por isso existe a proteção. Não podemos, com o falso discurso de desenvolvimento, sair destruindo tudo, pois, depois, isso volta contra toda a população. Os eventos extremos, crises climáticas que estamos vivendo, têm a ver com isso, com destruir territórios, com não proteger nascentes, deixando as pessoas sem água e em meio a temperaturas extremas, que é o caso dessa região”, disse a deputada Beatriz Cerqueira (PT), que solicitou a realização da audiência pública.
Em entrevista a O TEMPO, a moradora do município e pesquisadora do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Lauanda Lopes, explica que o projeto de lei 02/2025 foi apresentado à Câmara Municipal apesar de uma recomendação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para que isso não ocorresse.
“O promotor orientou que o projeto fosse retirado de pauta, tanto pelo prefeito como pelo presidente da Câmara, mas eles não acataram essa recomendação. A gente espera que essa Audiência seja um encaminhamento para se encerrar esse processo, pois sabemos que, se esse projeto for votado, colocaremos em risco uma grande área de preservação ambiental, dando brecha para as mineradoras se inserirem no território”, explica.
A mudança prevê uma redução de aproximadamente 5,5 mil hectares do parque. Entre os argumentos para a proposta estaria o fato de existirem 86 hectares que pertenceriam ao município vizinho, de Caraí. “Por que não retirar então apenas estes 86 hectares?”, indaga Lauanda.
Rodrigo Pires Vieira, assessor técnico da Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, explicou que, durante a Audiência Pública, foram apresentados três requerimentos cobrando ações para tentar impedir a aprovação do projeto de lei. “Um deles pede que a Prefeitura atenda a recomendação do MPMG, outro para que a Câmara não vote o projeto e, por fim, um solicitando que o Ministério Público judicialize o processo, já que a recomendação do órgão não foi respeitada”, concluiu.
O TEMPO procurou a Prefeitura de Araçuaí, mas, até a publicação da reportagem, o município ainda não tinha se posicionado.
Povos tradicionais não teriam sido consultados
Ainda conforme Lauanda, outro ponto que está sendo contestado pela população local é o fato de que comunidades tradicionais que habitam dentro da área protegida e no seu entorno não teriam sido consultadas antes da apresentação do projeto de lei.
“A região é composta por diferentes povos tradicionais, como os chapadeiros, que coexistem com esse ambiente, inclusive ajudando na sua própria manutenção. Essas comunidades tradicionais sequer foram consultadas, desrespeitando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, a legislação está clara que, para qualquer mudança na APA, é preciso um laudo de impacto socioambiental, o que não foi apresentado”, denuncia Lauanda.
Entre as comunidades “ignoradas” pelo projeto de lei estão Malhada Preta, Giral, Córrego Narciso do Meio, além do povo indígena Aranã.
Ainda durante a Audiência Pública, a professora de Serviço Social da UFVJM e pesquisadora do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, Vanessa Juliana, também denunciou o risco que a alteração na área do parque representa para comunidades tradicionais da região, que podem sofrer um processo de desterritorialização vinculado ao êxodo rural.
“Muitas vezes eles são empurrados pelos grandes empreendimentos para deixarem suas terras. São empurrados pela especulação imobiliária, pela especulação fundiária, mas, também, empurrados por não suportarem todos os riscos para saúde, para segurança alimentar e para a própria segurança física, decorrentes desses processos no território. Esse processo de desterritorialização não trata apenas do deslocamento físico, mas de uma ruptura com os modos de vida, que são historicamente construídos da relação com a ancestralidade, com o território sagrado”, completa a professora.
Prefeitura não enviou representante
Com ampla participação de moradores e especialistas da cidade, que percorreram cerca de 600 km em uma viagem de mais de 10h, a Audiência Pública não teve a participação do prefeito Tadeu Barbosa de Oliveira (PSD), que também não enviou qualquer representante do município.
Apesar de não ter comparecido, o prefeito Tadeu Barbosa enviou um “recado” por meio do deputado estadual Duarte Bechir, do seu partido, que afirmou em plenário que, segundo o chefe do executivo, ele teria recebido o convite no dia anterior e, por isso, não poderia comparecer.
A alegação foi imediatamente refutada pela deputada Beatriz Cerqueira, que apresentou aos presentes todos os comprovantes dos contatos feitos e informou que, no último contato, o município teria informado que a secretária de Meio Ambiente estaria na ALMG.
“Se ele disse isso, ele mentiu, pois não foi isso que aconteceu. Todos os convites foram feitos com antecedência. Ele poderia ter participado virtualmente também, mas, me parece que o caso foi, de fato, para fugir do debate público em um espaço que ele não teria controle, não teria como censurar”, cravou a parlamentar.
FONTE: O TEMPO