O conto fantástico da reparação e o desastre-crime da Samarco, Vale e BHP Billiton

A leitura crítica da decisão judicial reforça que o maior benefício da criação de uma fundação como a Renova foi retirar de cena as verdadeiras responsáveis pelo desastre e por tantos outros danos gerados por um processo de reparação moroso, insuficiente e que propaga novos contornos de um desastre-crime na vida das pessoas atingidas

“É evidente o desvio de finalidade da Fundação [Renova], que se prestou a uma campanha publicitária e de marketing para criação de uma narrativa fantasiosa a favor da própria fundação”, concluiu o juiz da 4ª Vara Federal Cível e Agrária da Subseção Judiciária de Belo Horizonte após analisar um conjunto de provas apresentado pelo Ministério Público Federal, em parceria com os Ministérios Públicos de Minas Gerais e Espírito Santo e as Defensorias Públicas da União e do Estado de Minas Gerais. Na sentença, a Fundação Renova e as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton também são condenadas a indenizações por dano material e danos morais coletivos, que somam aproximadamente R$56 milhões.

A decisão sobre o desastre-crime provocado pela Samarco, Vale e BHP Billton foi emitida no final de julho pelo juiz Vinícius Cobucci e pode ser considerada um ato histórico em favor das pessoas atingidas. Nele, a justiça brasileira reconhece que a Fundação Renova não tem sido capaz de efetivar devidamente os programas e ações para “recuperar o meio ambiente e as condições socioeconômicas”. Além disso, acata judicialmente evidências que comprovam a divulgação unilateral de estudos sobre a toxicidade do rejeito, a imprecisão das informações sobre o pagamento das indenizações, a má-fé ao divulgar a promoção do reassentamento das famílias atingidas, entre outras provas que evidenciam violações, ingerência e a agressividade jurídica e publicitária cometidas contra as pessoas atingidas.

Incontestavelmente, essa vitória compete às milhares de pessoas atingidas. Pessoas de diferentes localidades e condições que foram obrigadas a se organizarem para reivindicar o mínimo: reconhecimento e reparação integral por todos os danos gerados a partir do rompimento de uma barragem de rejeitos de minério localizada em Mariana/MG, que integrava um dos complexos industriais controlados pelas mineradoras citadas na sentença.

A gestão de desastres vem incluindo novas instituições e poderes. Em 5 de novembro de 2015 ocorreu um desastre-crime no estado de Minas Gerais.
Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Entre os destaques da decisão, duas considerações denunciadas há tempos em todo o território atingido:

  • “Ao invés de destinar dezessete milhões de reais a uma agência de publicidade, o dinheiro poderia ter sido investido em diversas finalidades de efetiva reparação, como exposto na inicial”;
  • “atuação de má-fé: as finalidades do programa 06 [Programa de Comunicação, Participação, Diálogo e Controle Social] foram desviadas para a campanha de marketing, sob a rubrica de despesas administrativas”.

Ainda assim, para Vinícius Cobucci, “a questão é se houve a participação e intenção deliberada por parte das sociedades empresárias mantenedoras ou se a fundação se tornou um ecossistema próprio que abriga interesses diversos da reparação”.

Escrevemos esse texto para ressaltar que as provas apresentadas não foram suficientes para “entender por que uma decisão da Renova foi tomada, isto é, por que a Diretoria e Conselho Curador decidiram pelo custeio de uma campanha multimilionária de marketing”. Em síntese, de acordo com a decisão, “o desvio de finalidade da fundação [Renova] está provado mas, o porquê isso foi feito, não”. Inclusive, salientamos que a recusa da participação das empresas interfere sobremaneira na decisão, pois, “se houvesse provas a respeito da motivação e de efetiva interferência das sociedades na autonomia da fundação, seria necessária e justificável  majoração”. Ou seja, se o juiz reconhecesse a participação das empresas na criação de uma narrativa fantasiosa, o valor total das indenizações seria maior.

Mas, afinal, o que é a Fundação Renova?

Em março de 2016, a União e os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo fizeram um acordo com  Samarco, Vale e BHP Billiton, e estabeleceram as condições jurídicas para a criação de uma entidade sem fins lucrativos para centralizar os programas e ações para “recuperar o meio ambiente e as condições socioeconômicas”. Meses depois, criou-se a Fundação Renova, entidade cujas ações deveriam estar voltadas totalmente para a reparação e que, desde então, é controlada pela Samarco, Vale e BHP Billiton, a partir da indicação da presidência da Diretoria Executiva e pela presença majoritária no Conselho Curador.

Nesses termos, é evidente que as ações da Fundação Renova são tomadas pelo Conselho Executivo e operacionalizadas com aval de sua Diretoria Executiva. O que, na prática, significa que são a Samarco, Vale e BHP Billiton que respondem por todas elas.

“Na medida em que a Renova voluntariamente executou menos nos programas finalísticos do que na sua campanha de marketing, comprova-se que houve uma escolha voluntária para destinar recursos para uma finalidade viciada. No entanto, o MP e a DP não deixam claro de quem partiu a direção e ordem para que isso acontecesse”. Ao reconhecer que a  criação de uma narrativa fantasiosa beneficia apenas a própria fundação, a decisão deixa de lado os interesses das corporações da indústria extrativa que a controlam, e distancia a possibilidade de sua responsabilização não só pelo desastre, mas por provocar novos danos a partir do processo de reparação.

São muitos os estudos que destacam como a  gestão de desastres tem incluído novas instituições e poderes. Muito mais que apresentar soluções efetivas, a estratégia cria novas oportunidades de negócios, e possibilita um disfarce perfeito para as suas falhas.

O setor mineral vive uma crise de reputação e credibilidade em escala mundial, o que é de conhecimento das grandes corporações como a Vale e BHP Billiton. Além dos desastres, a emissão considerável de gás carbônico pelas mineradoras e seu papel na crise climática também estaria contribuindo para a perda de credibilidade. Na busca por legitimidade, o setor se empenha em adequar o discurso com pautas de cunho social, ambiental e climático, para garantir a manutenção dos preços das ações e a atração de novos investidores, seja com a falácia do “minério 0 carbono”, seja com a criação de uma narrativa fantasiosa sobre a reparação da bacia do Rio Doce.

Além disso, por mais que a decisão alegue que “a Fundação Renova não pode substituir o Estado para dizer o que foi de fato feito e o que se reconhece como avanço”, todo o seu trabalho deve ser monitorado pela administração pública, que, ao final detém a responsabilidade pela formulação da política pública no processo de reparação”, o que observamos nos municípios atingidos é que a Fundação, sob os comandos da Samarco, Vale S/A e BHP, vai atuando como um governo paralelo, assumindo um papel ativo na distribuição de bens e serviços públicos mas que são determinados de forma precária, fragmentada, a partir de interesses de negócio e sem a participação das comunidades atingidas.

A leitura crítica da decisão judicial reforça que o maior benefício da criação de uma fundação como a Renova foi retirar de cena as verdadeiras responsáveis pelo desastre e por tantos outros danos gerados por um processo de reparação moroso, insuficiente e que propaga cotidianamente novos contornos de um desastre-crime na vida das pessoas atingidas. Ainda assim, terminamos esse texto com o suave gosto de vitória pelo reconhecimento judicial de uma denúncia antiga, formulada e propagada pelas pessoas atingidas a todos que passam pelo vale do rio Doce: “a tentativa de romantizar a reparação, sem levar em conta o trauma do passado, configura uma nova violência à memória das vítimas”.

FONTE DIPLOMATIQUE

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