Entenda como um único incêndio pode levar espécies de aves para perto da extinção.
Nesta última sexta-feira, 14 de junho, uma área do Brasil que tem uma riqueza em biodiversidade inestimável foi atingida por um grave incêndio florestal na parte alta do Parque Nacional de Itatiaia. A área do parque é composta pelos municípios de Itatiaia e Resende, no estado do Rio de Janeiro, e Itamonte, em Minas Gerais.
Nesta época, incêndios são bastante comuns em inúmeros locais do país, gerando um sentimento coletivo de banalização desse tipo de acontecimento tão destrutivo. Porém, esses eventos não podem ser tratados de forma negligente, pois geram consequências muito sérias e frequentemente irreversíveis como a extinção de espécies.
Neste artigo, quero explicar porque o incêndio no local conhecido como o pico das Agulhas Negras é gravíssimo e preocupante, podendo inclusive conduzir algumas espécies de pássaros ao risco de extinção.
Incêndio atingiu um ambiente altamente especializado
O incêndio florestal destruiu ambientes altamente especializados, raríssimos de serem encontrados, pois são ímpares devido às características de clima, vegetação e altitude que existem em poucos pontos da cadeia de montanhas da serra da Mantiqueira.
Esses ambientes especiais ofereceram condições para a evolução de espécies que dependem obrigatoriamente desses locais peculiares para sobreviverem. É o caso da garrincha-chorona (Asthenes moreirae), a choquinha-da-serra (Drymophila genei) e a saudade (Lipaugus ater), que são pássaros encontrados somente em florestas de altíssima riqueza em biodiversidade.
É importante ressaltar que a presença comum dessas aves no pico das Agulhas Negras é informação suficiente para classificar o local como sendo de alto valor biológico, pois as aves são excelentes bioindicadores de qualidade ambiental. Em outras palavras, significa que a presença dessas espécies de aves no local indica que há uma enorme riqueza de um coletivo de organismos que inclui árvores, plantas, fungos, insetos, anfíbios, répteis, mamíferos, entre outros seres, além das aves.
Uma característica desses ambientes, que explica sua peculiaridade, é justamente a elevada altitude: alcança 2.800 metros, sendo o ponto mais alto do estado do Rio de Janeiro, o terceiro ponto mais alto do estado de Minas Gerais e o quinto mais alto do Brasil. O incêndio destruiu grande parte do ambiente de espécies que são endêmicas do país, ou seja, que só existem aqui – o que torna a situação ainda mais preocupante.
Garrincha-chorona (Asthenes moreirae)
A garrincha-chorona é um pássaro marrom pequeno de aparência modesta, que em seu nome científico há referência para sua fragilidade. Ela se alimenta de insetos e pequenos frutinhos silvestres que encontra unicamente nos campos naturais de altitude acima de 2.000 metros nas serras de nosso país. Sua presença é notada por seu canto, que lembra uma espécie de apelo longo, tão característico que influenciou seu nome popular.
A grande maioria dos registros fotográficos e sonoros da garrincha-chorona foram feitos no Parque Nacional de Itatiaia, nos municípios de Itatiaia, Resende e Itamonte. Segundo a plataforma de ciência-cidadã Wikiaves, até hoje há 766 registros sonoros e fotográficos da espécie no país, sendo que 78,3% destes foram feitos justamente nos três municípios atingidos pelo grave incêndio.
Neste momento você pode estar pensando: “Ah Melissa, mas os passarinhos não são bobos. Quando o fogo se aproxima, eles voam para longe”. Infelizmente, devo esclarecer que pássaros altamente especializados como a garrincha-chorona não tem grande autonomia de voo, não migram e também são incapazes de viver fora dos ambientes no qual evoluíram, que são justamente os frágeis campos naturais de altitude, que queimam com enorme facilidade.
Vou fazer aqui uma analogia para que você entenda a minha preocupação. Você certamente se lembra da recente e enorme tragédia que aconteceu no Rio Grande do Sul, que levou a óbito quase 200 pessoas, feriu quase mil e deixou 440 mil desabrigados. Com o incêndio, mesmo que a maior parte das aves não tenha morrido, é muito provável pelo local atingido e pela extensão do fogo, que já queimou 200 hectares, que ao menos metade da população mundial de garrincha-chorona tenha ficado desabrigada e parte tenha morrido sem qualquer ajuda ou chance de sobreviver fora de seu ambiente. Certamente, os indivíduos que restaram terão de competir por abrigo e alimento entre si e entre espécies menos frágeis ou exigentes, que são as aves que, na Ornitologia, chamamos de generalistas.
Choquinha-da-serra (Drymophila genei)
A choquinha-da-serra é outro passarinho que me preocupa porque frequenta ambientes muito semelhantes, mas com a vantagem de viver em serras de altitude entre 800 e 2.000 metros. Sendo assim, ela é um pouco menos especializada, mas ainda depende de florestas íntegras de alto valor em biodiversidade.
No título do artigo procurei fazer um trocadilho com o nome popular da garrincha-chorona e de um outro pássaro que vive naquela serra em altitudes entre 1.200 e 2.050 metros, que é o saudade (Lipaugus ater), espécie que, assim como a garrincha-chorona, tem seu nome relacionado com o seu canto. De tão triste e “dolorido”, a ave foi chamada de saudade. Sua vocalização pode ser ouvida de longe porque é muito aguda e emitida por longos períodos, como um triste lamento da floresta.
Status de conservação deve mudar em breve
Acompanhe o status de ameaça da garrincha-chorona, da choquinha-da-serra e da saudade, consultando a lista de espécies ameaçadas da Birdlife International, que não apresentavam, até o momento, qualquer grau de ameaça. Entretanto, certamente elas entrarão para a lista de aves ameaçadas após esse único incêndio. Esse triste fato só ilustra a fragilidade de nossa biodiversidade que, de um dia para outro, pode ter seu destino inclinado para a extinção.
É imperativo que mais pessoas conheçam e tenham um vínculo verdadeiro de amor e admiração por esses seres e locais especiais, para que políticas de proteção sérias e responsáveis sejam empregadas de forma eficiente nas valiosas unidades de conservação.
Eu só consigo enxergar um caminho para gerar esse vínculo. E estou falando é com você mesmo, observador (a) de aves: só o conhecimento profundo das aves e a observação de pássaros podem popularizar e engajar pessoas a favor da nossa biodiversidade.
Você pode começar com o simples gesto de compartilhar este artigo com alguém que nem tinha noção da existência desses passarinhos especiais e de sua fragilidade. Obrigada!
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FONTE FAUNA NEWS